EM NOVO ÁLBUM, RINCON SAPIÊNCIA COMBATE O DRAMA COM DANÇA
Caráter político e discussão sobre corpo e identidade são alguns dos caminhos que o rapper percorre
Por LULIE MACEDO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 04/12/2019 - Matéria atualizada em 04/12/2019 às 06h00
SÃO PAULO, SP - A dança já foi um elemento bastante importante no hip-hop. Nos Estados Unidos, foi a partir das block parties – com suas batalhas de break, grafite, rimas e batidas – que a cultura brotou e evoluiu. Eram os anos 1970. Tudo acontecia na rua. Rincon Sapiência, que ainda não tinha nascido (ele veio ao mundo alguns bons anos depois, em 1985), sabe que a cultura de rua se desenvolve hoje em outro território. Não que, no caso dele, a habilidade também como criador digital signifique inovação ou qualquer outra bobagem do tipo. O que ele faz é puxar o cordão umbilical do hip-hop – e aí entra o tratamento que dá para um tema tão presente quanto necessário, como a ancestralidade – e costurar isso com os desejos e carências de agora. “A quebrada é tão ancestral/ Nos comunicamos em roda”, ele diz em uma das músicas.
DANÇA COMO FIO CONDUTOR
A dança é o fio condutor de “Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps”. É um título bastante rebuscado para algo que é bem simples: o contrapeso para a vida real. Ou seja, a música e a dança. A fértil e pulsante cena de dança se expande há alguns anos no país, em movimentos e grupos como Batekoo, Amem, Jamaicaxias, além de todos os coletivos e houses de vogue, afrohouse ou passinho, é apenas a ponta do iceberg. O caráter político da dança e a discussão sobre corpo e identidade são alguns dos caminhos que percorre o rapper e poeta de Itaquera, região leste de São Paulo, no seu terceiro álbum de estúdio. “A dança é como ginástica/ Ela tem a cintura elástica/ Ancestralidade em prática/ Eu confesso que é nossa tática/ Afinal de contas, multiplica essa multidão matemática”, canta o artista em outras das canções do disco. É pela dança que o autoconhecimento, muitas vezes, acontece.
ANCESTRALIDADE MARCANTE
Voltando à ancestralidade, Rincon foi buscar no músico Famoudou Konatè, um dos principais bateristas do mundo de djembe – um tipo de tambor originário de Guiné-Bissau –, muitos dos elementos sonoros para construir sua coleção de “afroreps”. Ele sampleia o guineense em “Meu Ritmo” e dá o crédito na própria letra: “Pegada funk tipo Guimé/ Mas o meu tambor vem da Guiné.” Experimentar nunca foi tabu para o Manicongo. Para quem já foi de Kamau a NX Zero, de Alice Caymmi a IZA, é natural ter agora Mano Brown de um lado e Gaab do outro. Só consegue arriscar assim quem revisitou feridas e se conhece bem. Talvez por isso, no “Mundo Manicongo”, dança e “afroreps” se sobreponham ao drama. Não deve ser fácil fazer a maioria dançar com linhas como “Quanto vale uma vida? Pensa no seu pivete/ Na bolsa tem a Bíblia/ Mas também tem canivete”, ou então “Trabalhadora voltando pra casa/ Perguntando pra Deus: ‘Por que não tenho asas?’” – trechos de “A Volta para Casa”, do disco “Galanga Livre”, de 2017.
Mas, exatamente por reafirmar a importância da cultura do MC, Rincon deve ter a dimensão do compromisso que mantém com quem o acompanha desde as batalhas de freestyle, há quase 20 anos – sim, esse é o tempo da persistência de Sapiência em sua arte.
STORYTELLING X VARIAÇÃO VOCAL
Quando o chamado é para fazer todo mundo dançar, as dificuldades ligadas à construção da lírica (ou “verso livre”, como diz o próprio Rincon Sapiência) se refletem na redução do storytelling como recurso narrativo – habilidade que ele sempre ostentou em trabalhos anteriores. Essa contação de histórias – escola importante no leque de subgêneros do rap – pode não ser a prioridade em “Mundo Manicongo”, mas a variação vocal e do esquema de rimas de Rincon são trabalhados no detalhe. Em vez das “punchlines” fáceis, Rincon trafega pelas sutilezas. Conversar racionalmente com as pessoas – por meio de crítica política e social – e, ao mesmo tempo, conversar “fisicamente” com quem consome seu som é um diálogo que, quando potente, se dá em um plano totalmente ritualístico – e aqui voltamos, por fim e mais uma vez, à ancestralidade tão marcante no trabalho do artista. “Não tem problema nenhum se seu corpo balançar”, lembra Rincon. Ele sabe que a dança sempre foi uma das maneiras de combater o drama – seja o individual ou o coletivo.