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Nº 5692
Caderno B

Roqueiros alagoanos rebatem fala de presidente da Funarte sobre rock

Novo gestor usa Youtube para propagar teorias da conspiração e disse que rock induz juventude às drogas

Por Maylson Honorato | Edição do dia 14/12/2019 - Matéria atualizada em 16/12/2019 às 15h05

/Juventude e roqueiros com estrada concordam que fala de Mantovani foi equivocada
/Sebage celebra o rock e se diz preocupado com marginalização de artistas
/Banda Lobos Uivantes: Sebage , Júnior Core, Wallays e Normando Galdino

Juventude e roqueiros com estrada concordam que fala de Mantovani foi equivocada
Juventude e roqueiros com estrada concordam que fala de Mantovani foi equivocada - Foto: Acervo pessoal
 O último mês do ano começou com mais uma polêmica envolvendo um indicado do presidente Jair Bolsonaro para um órgão de fomento cultural. Quem está no comando da Fundação Nacional de Artes (Funarte) desde o início de dezembro é o maestro Dante Mantovani, que, além de ferrenho defensor de Bolsonaro, é youtuber. Com mais de 6 mil inscritos, o novo integrante do governo usa a internet para tirar dúvidas sobre música e compartilhar teorias da conspiração - como a historieta de que agentes comunistas infiltrados na CIA foram responsáveis por distribuir LSD para jovens em Woodstock, com o objetivo de destruir a família. A teoria é endossada em um dos vídeos.

Entre as falas polêmicas do aluno de Olavo de Carvalho (astrólogo mentor do bolsonarismo), Dante Mantovani afirma que serviços de inteligência estão infiltrados na indústria fonográfica norte-americana. Para ele, a União Soviética mandou agentes para realizar experimentos com discos direcionados a crianças e, depois, a adolescentes. Como exemplo ele usa Elvis Presley e The Beatles.

"O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo”, diz o maestro em um trecho.

A sucessão de teorias da conspiração endossadas pelo agora gestor da Funarte, logo tomou conta das redes sociais e virou motivo de piada e, ainda, de discussões acaloradas sobre as ideias de Olavo de Carvalho e seus seguidores. Porém, para artistas e demais profissionais da economia criativa, a piada é de mau gosto.

“A afirmação do presidente da Funarte é lamentável, mas previsível, tendo em vista o desmonte cultural que tem se instalado no Brasil do começo do ano para cá. Um país tão abundante em diversidade cultural como o Brasil precisa de lideranças que enxerguem essa diversidade como um trunfo e não uma afronta. O rock é só mais um capítulo de um ataque que vai se alastrando também ao cinema nacional, às artes plásticas, às culturas de matrizes africanas. A repressão da arte é mais um passo à total supressão da liberdade de expressão”, opina o músico alagoano Luiz Luan.

O jovem conta que, ainda na adolescência, foi o rock que o aproximou da música. “Me fez ter vontade de tocar e, de certa forma, continua sendo meu gênero preferido”. Para ele, a fala do presidente da Funarte foi um golpe, não ao gênero musical, mas à cultura brasileira, que é conhecida pela diversidade. O jovem alega que o fato do rock'n'roll ser essencialmente questionador é o motivo do ataque.

“Historicamente, o rock é uma grande ferramenta de crítica social e contestação política, desde os primeiros versos de My Generation, do The Who, ao auge do movimento punk, e ainda que no Brasil atual o gênero esteja longe de ser protagonista, álbuns como Ponto Cego, do Dead Fish, continuam sendo lançados com opiniões políticas fortes. Como um representante do governo federal, o presidente da Funarte apenas fez o que o atual governo vem fazendo corriqueiramente: propaga falácias e teorias da conspiração sem nenhum embasamento com o objetivo de descreditar o que quer que possa ‘ameaçar’ seu status. O rock é apenas mais uma das diversas formas de expressões artísticas mundiais, e uma das mais populares, e deve ser preservado e cultuado, não estereotipado de maneira tão antiquada”, diz Luiz Luan.


FUNARTE

A Fundação Nacional de Arte é uma das mais importantes para o fomento à arte no Brasil. Além de prêmios e editais, a instituição mantém equipamentos culturais como o Palácio Gustavo Capanema e o Teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro; o Teatro Plínio Marcos, em Brasília, e a Sala Guiomar Novaes, em São Paulo, entre outros. O órgão foi fundado em 1975 e no roll de presidentes que antecederam Mantovani estão nomes como Ziraldo, Ferreira Gullar, Antônio Grassi e Stepan Nercessian. “O rock em mim ativa alegria, amor, inspiração, euforia, isso vai depender se eu escolho ouvir Beatles ou Guns n’ Roses (risos). O que posso garantir é que ele não influencia ao consumo de drogas, ao aborto, ou a qualquer outra convenção mal vista socialmente, pelo menos não mais do que o pagode, a eletrônica ou o sertanejo, por exemplo. Relacionar um ritmo à causa direta de qualquer comportamento é ridículo”, finaliza o jovem roqueiro.


AOS 58 ANOS E FAZENDO ROCK PRA VALER

Sebage celebra o rock e se diz preocupado com marginalização de artistas
Sebage celebra o rock e se diz preocupado com marginalização de artistas - Foto: Divulgação
 O rock capaz de seduzir jovens como Luiz Luan, de 23 anos, já era capaz de seduzir veteranos como Sebage, incansável roqueiro alagoano, que aos 58 anos segue produtivo. O artista dava os primeiros passos na carreira musical 35 anos atrás, ao lado de nomes como Gal Monteiro e Júnior Almeida - também alagoanos. Ainda garoto, seja pela despretensão da Jovem Guarda ou pela pegada dos Beatles, o rock seduziu Sebage, segundo ele mesmo. Led Zeppelin e David Bowie são alguns dos nomes que também influenciaram o cantor, compositor e produtor cultural.

Ele conta que se afastou da música por diversas vezes ao longo da carreira, mas que agora está de volta ao rock e em sua melhor forma. Crítico e sem papas na língua, o artista se diz perplexo e até pessimista com a maneira com que o governo federal trata a Cultura.

“Ele reproduz o pensamento de um grupo que tomou o poder pela mentira, pelo preconceito e pela ignorância e arrogância. O fundamentalismo religioso é perigoso, eles querem dizer que a religião deles é melhor que outras, que só existe uma coisa certa”, diz o roqueiro.

“Ele faz parte desse pensamento, desse contexto, de um governo que ganhou as eleições divulgando mentiras, criminalizando um partido, fazendo lawfare. Tem essas loucuras, juntando com as loucuras que a Damares fala, do Alvim, que ficou doente e nunca se recuperou”, reflete Sebage.

Discorrendo ponto a ponto sobre as teorias da conspiração endossadas por Mantovani, Sebage as rotula como “doidera”, mencionando ideias como “terra plana” ou “conspiração comunista”.

“Eu sou cristão. E para mim, essas loucuras fazem parte do plano do diabo. E o diabo está aí à solta, está matando índios, destruindo florestas… É o próprio demônio que está no governo, eles próprios são os possuídos pelo demônio, eles gritam, tentam enganar as pessoas com falas assim. Estamos vivendo uma espécie de ditadura obscura”, afirma.

O alagoano se diz preocupado com o que pode acontecer com o rock se declarações como a do novo presidente da Funarte se tornarem comuns ou virarem guia para as políticas públicas adotadas pelo órgão público. Ele chama de “aval moral” para marginalizar o rock - mais uma vez.

“Eu tô até pessimista. Em alguns momentos vejo minha música ser censurada, eu virando um artista maldito, e todo esse avanço fascista vestido de religiosidade. O que acontece é que esse discurso dá aval moral para marginalizar o rock mais uma vez. Da mesma forma que o Bolsonaro falar que índios têm muitas terras dá aval, por exemplo, para que os madeireiros e grileiros de terras comecem uma guerra contra os índios. O resultado de discursos como esse está aí: toda semana temos notícia de algum índio morto”, provoca.

A paixão pela arte faz com que Sebage mantenha um ritmo frenético de produção. Este ano, dois CDs do artista foram disponibilizados nas plataformas digitais pelo selo estreante Crooked Tree Records, comandando em Alagoas por Mário Alencar. Além dos discos, que não são necessariamente inéditos, Sebage se propõe a produzir eventos culturais e sociais na capital alagoana, realizando shows temáticos e projetos como o “Antropofágico Miscigenado”.

“Comecei há muito e não vou parar. O rock faz parte de mim. Aos 58 anos estou me sentindo um jovem de 26 e estou fazendo rock pra valer e até morrer”.


ROCK’N’ ROLL

Banda Lobos Uivantes: Sebage , Júnior Core, Wallays e Normando Galdino
Banda Lobos Uivantes: Sebage , Júnior Core, Wallays e Normando Galdino - Foto: Normando Galdino
O rock é um gênero musical que teve origem nos Estados Unidos a partir dos anos 1950, e se popularizou pelo mundo rapidamente. Mais que um gênero musical, o rock possui um apelo comportamental e visual de irreverência e atitude. Os nomes mais relevantes do rock nasceram nos EUA e na Inglaterra e, com o passar dos anos, passou por diversas divisões, entre os quais Rock Clássico, Hard Rock, Heavy Metal, Indie Rock, Glam Rock, Punk Rock, Grunge, Rock Progressivo e Country Rock. Apesar de ter tido seu auge nos anos 1970 e ter decaído a partir dos anos 2000, o gênero musical possui milhões de adeptos no Brasil e no mundo.

Em Maceió, o rock tem um dia oficial: o Dia Municipal do Rock é regulamentado por lei e comemorado no segundo sábado de janeiro. Às vésperas da data festiva, criada pelo vereador Lobão em 2017, os roqueiros esperam dar uma resposta à críticas que o gênero musical vem sofrendo.

“É irresponsável um presidente da Funarte associar o rock ao uso de drogas, ao aborto ou ao satanismo. Refletindo sobre isso, penso que a fala infeliz tenta se aproveitar de estigmas que o rock possuía, mas, principalmente, penso que temos hoje questões e debates muito mais importantes a fazer. Não ajuda o Brasil promover discurso de ódio a ritmos musicais, à classes sociais, à movimentos sociais. É necessário que o governo volte sua atenção para o que realmente é importante. Falas como essas são tentativas de tirar a atenção do povo brasileiro das questões importantes, das crises do governo, das decisões equivocadas, são cortinas de fumaça. Em menos de um ano de existência o governo só chama atenção por polêmicas. A gente não pode dar palco para figuras que falam absurdos assim”, defende Ivo Neto, de 24 anos.

O jovem mora em Maceió, mas veio do Sertão de Alagoas. Ele conta que foi criado ouvindo ritmos distante do rock e característicos do Sertão, como o forró. Mesmo assim, se apresenta como um apaixonado pelo estilo musical e afirma que ouve diariamente o bom e velho rock’n’roll.

“E mesmo assim, nunca me senti incitado a praticar nenhuma dessas coisas que foram apontadas pelo presidente da Funarte. Já fui ao Rock In Rio, no ano passado fui no show do Roger Waters, fui em vários shows de rock. E me sinto é feliz por ter tido a oportunidade de vivenciar, sobretudo ter visto o Roger Waters. O Pink Floyd é um exemplo do que o rock se propõe, que é ser crítico, as músicas são incentivos ao pensamento crítico. Essas é a essência do rock. É o que me chama atenção, o que me atrai e me faz ser esse grande apaixonado pelo rock”, diz.

“A música é isso, uma manifestação dos anseios sociais e precisa ter liberdade de produção. Isso tenta reprimir a produção musical e enganar as pessoas, porque nada disso que ele disse acontece”, finaliza.

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