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Nº 5854
Caderno B

DO FREVO POPULAR AO PSICODÉLICO SUBVERSIVO

Exposição em São Paulo enaltece trajetória e obra de Alceu Valença, nordestino chamado de “Bob Dylan brasileiro”

Por LUCAS BRÊDA/ FOLHAPRESS | Edição do dia 17/12/2019 - Matéria atualizada em 17/12/2019 às 06h00

Foto: Divulgação
 

“Pelos ouvidos passaram a voz do rádio, sabiá, bem-te-vi e o vento música nos pés de capim”, Alceu Valença canta em “Cinco Sentidos”, de 1981. Na pernambucana São Bento do Una, o canto dos pássaros e as músicas do rádio eram tudo que chegava ao artista, ainda criança. Até fevereiro do ano que vem, uma mostra inteira dedicada a Alceu Valença ocupa o Itaú Cultural, em São Paulo. Uma das salas conta com um óculos de realidade virtual com imagens panorâmicas da fazenda onde o cantor morou na infância. Não é possível ouvir os passarinhos, mas um áudio traz o próprio Alceu imitando o canto das aves. “Sempre fui de imitar tudo”, ele conta. Em uma hora de entrevista, o cantor e compositor imitou nomes que ouvia no rádio - Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Francisco Alves-, a vizinha soprano de quando ele, ainda adolescente, morava no Recife, e até Miltinho cantando “Mulher de Trinta” no meio de uma viagem para jogar basquete em Ponta Grossa, no Paraná, aos 14 anos. Como artista, contudo, Alceu Valença tem pouco de imitador. Ele foi da psicodelia subversiva dos anos 1970 à exploração de forró, frevo e da música tradicional nordestina, misturando guitarras com flautas e sanfonas, vocais performáticos e letras existenciais com poesias populares. O pernambucano, na verdade, sempre foi um provocador. A exposição no Itaú Cultural exibe, por exemplo, um poema que ele escreveu em uma prova, quando ainda estudava direito, em 1969. “Quando cheguei na sala, em cima de todas as mesas havia um questionário. Era para um curso de sociologia em Harvard.” Alceu deixou o exame inteiro em branco e respondeu somente uma questão, na qual tinha que relacionar marxismo e cristianismo. “Depois de meses, a banca examinadora voltou para dizer quem tinha passado”, diz. “Aplicaram essa prova em vários países da América Latina e eu era o único que tinha feito um poema. Pediram para explicar o que eu queria dizer em palavras mais diretas”, ele relembra. Alceu não apenas foi aprovado como viajou aos Estados Unidos sem saber falar inglês. Com um violão, costumava encontrar hippies e tocar suas músicas, além de versões de Luiz Gonzaga e de outros compositores brasileiros. Um dia, ele diz, um jornalista da cidade onde estava, Fall River, em Massachusetts, marcou um encontro, fez uma entrevista e classificou Alceu como o “Bob Dylan brasileiro”, pois ele havia citado que fazia “música do campo” e que protestava contra a ditadura. Quando trabalhava como jornalista, costumava mudar o nome das cidades nas notícias para o da sua terra natal. “Se tivesse uma seca, uma enchente, era tudo São Bento do Una”, confessa, emendando que deixou a advocacia porque abandonava os clientes que achava estarem errados. Mas a maluquice nunca esteve ligada às drogas. “Na faculdade, quando me passavam [um baseado], eu puxava e botava pra fora. Tinha medo de ficar doido. Naquela época, quem não fumasse maconha era tido como careta.” Ele conta que as citações “Joana” e “viagem” na letra de “Talismã”, sua primeira parceria com Geraldo Azevedo, não eram uma referência à maconha –entendimento que a censura não teve. “Disseram que ‘Joana’ lembra ‘marijuana’, que é proibido. ‘Viagem’ remete à viagem psicodélica. Perguntei: e ‘Diana Caçadora’, pode? Aí, coloquei Diana.” Entre outros casos de censura e problemas com a polícia durante o regime militar, Alceu lembra de ter ficado preso por um dia quando ocupou o diretório acadêmico da Universidade Federal de Pernambuco. “Tinha dois dedos de merda no chão da cela.” Quando o cantor, compositor e amigo Carlos Fernando foi levado ao Dops, os agentes estavam atrás de Alceu. Um infiltrado da polícia de cabelos longos e barba por fazer havia sentado num bar com Carlos e Alceu, em Ipanema. “Eu tinha lançado o primeiro disco [com Geraldo Azevedo], só era conhecido na roda”, lembra, falando sobre o começo dos anos 1970. “Perguntaram sobre o cabeludo que estava com ele. ‘Aquilo é um toxicômano’, disseram sobre mim. ‘Aquele engajado’. Ainda bem que não me prenderam.” A história gerou “Cabelos Longos”, uma resposta direta à ditadura, em “Molhado de Suor” (1975). “Para as pessoas que dizem que não existiu ditadura, existiu sim. E eu vi”, acrescenta o cantor. Alceu, contudo, não vê tantas semelhanças entre aquele período e o governo de Jair Bolsonaro, acusado de tentativa de censura e de esvaziamento dos órgãos dedicados à promoção da cultura no país. “A diferença é que esse governo foi eleito nas urnas, democraticamente”, diz. “Com o que acontece no Brasil, é preciso que as pessoas, todo mundo, baixem o tom e racionalizem a discussão. Precisamos, inclusive, modificar determinados conceitos. Esquerda você pode dizer, mas comunista? De repente, o jornal é comunista, a rede de TV é comunista. No máximo, eles podem ser ligados a quem tem o poder.” Aos 73 anos, Alceu Valença segue em plena atividade, emendando turnês por todo o país e, atualmente, preparando novas músicas para lançar até o Carnaval. Na estrada, apresenta diferentes shows -do mais roqueiro até especiais acústicos, acompanhado por orquestra, e outros de festa junina e bloco de Carnaval. A sensação, ele diz, é de ter ficado mais conhecido com a internet. “Em 1992, deixei as gravadoras e fiz trabalhos independentes. Recentemente, a internet começou a acontecer na minha carreira. Na época, ‘Girassol’ tocou absolutamente nada. ‘La Belle de Jour’ tocou pouquíssimo. Hoje, só no YouTube, ela tem 73 milhões de visualizações!” Nos últimos anos, vídeos de “Anunciação” executada em trens, metrôs ou nas ruas ficaram populares nas redes sociais. Recentemente, a faixa inspirou até um canto da torcida do Cerro Portenho, um dos maiores times de futebol do Paraguai. “No auge das gravadoras, quando eu viajava ao Rio Grande do Sul, por exemplo, tocava no [ginásio] Gigantinho. Quando virei independente, diminuiu, era mais teatro. Agora, já vai voltar a ser Gigantinho. E tudo tem a ver com a internet”, diz ele.

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