Caderno B
O ADEUS AO ALQUIMISTA DO BARRO
Antes de partir, Francisco Brennand abriu ‘cadernos verdes’ para pesquisadora da Ufal


Alquimista do barro - assim era chamado o artista visual pernambucano Francisco Brennand, que morreu na manhã da quarta-feira (19), aos 92 anos, após dez dias internado no Real Hospital Português, em Recife, em decorrência de complicações de uma infecção respiratória. O velório ocorre na capela Imaculada Conceição, na Oficina Cerâmica Francisco Brennand. O complexo monumental - uma antiga olaria herdada pelo artista de seu pai - no bairro de Várzea, funcionava como museu e ateliê e se tornou um ponto turístico importante na capital pernambucana. As esculturas de cerâmica ali exibidas eram a parte mais robusta e mais conhecida da produção de Brennand. São totens, armaduras, vermes que saem de dentro da terra, seres zoomórficos, soldados. Em grande número, as obras despontavam em uma paisagem de galpões e mata do Engenho Santos Cosme e Damião, que pode ser visitado (o ingresso custa R$ 20). Durante toda a trajetória do espaço e dos trabalhos que iam sendo acumulados ali, Brennand recebia o público ele mesmo. Com 1,87 de altura, e nos últimos tempos usando uma barba branca e comprida, apenas o bigode raspado na altura do nariz, era comum vê-lo transitando pelo espaço, recebendo os visitantes para conversas. Apesar da fama alcançada como ceramista, ele se considerava sobretudo um pintor. Em suas telas, se valia de fábulas e mitologias populares, não só do Nordeste, mas do mundo. A história de chapeuzinho vermelho, simbologia das forças masculina e feminina, era uma espécie de obsessão. Deu origem a séries fantásticas, em sua maioria protagonizada por uma mulher ou uma menina, e costumava passar ao fundo a figura misteriosa de um lobo, ou de um homem que usa a máscara do animal. Eram obras que se relacionavam com ideias feministas que Brennand viu ganhar volume na mesma época em que criou a oficina em Recife. Os mesmos motivos se desdobram em outras pinturas e produções de gravuras, nas quais o erotismo e as formas do corpo da mulher ganham destaque. Ele traz do modernismo ainda, em sintonia com a última fase do movimento iniciado nos anos 1920, a figuração de temas e representações populares. Entram para o vocabulário do artista as formas da natureza que observava em solo nordestino. Os pássaros, os insetos, as frutas da região. Quando abriu a Oficina Brennand, em 1971, o artista, cuja família é de origem britânica, já se dedicava à produção artística havia mais de 20 anos. Ele começou sua trajetória em 1942, quando conheceu o artista plástico pernambucano Abelardo da Hora, também eclético em relação aos suportes que utilizava, com temas que revelam a influência direta de Cândido Portinari. Brennand foi contemporâneo de Ariano Suassuna, com quem produzia um jornal literário. Ele se incomodava, porém, com a classificação de seu trabalho como “armorial”, movimento capitaneado por Suassuna que buscava criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular nordestina. “Eu reajo de imediato e digo: armorial não, eu sou sexual”, disse numa longa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo de 2013. As viagens nos anos 1940 e 1950 para a Europa ainda alimentaram sua bagagem de influências, principalmente entre modernistas, e especialmente da obra do arquiteto catalão Antoni Gaudí. Suas esculturas e pinturas estão espalhadas por espaços públicos e privados de diversas cidades. No Recife, há o mural sobre a Batalha dos Guararapes, que opôs portugueses e holandeses, além de um parque com cerca de 90 esculturas que pode ser visto do Marco Zero -a principal delas é uma torre em argila e bronze de 32 metros, a “Coluna de Cristal”. Em Miami, produziu um mural para a sede da empresa de bebidas Bacardi. Em São Paulo, é possível ver esculturas de Brennand na estação metrô Trianon-Masp e em um jardim em frente ao prédio do Sesc Pinheiros. A notícia da morte de Brennand repercutiu sobretudo entre os políticos. Tanto o Governo do Estado de Pernambuco quanto a Prefeitura de Recife declararam luto oficial de três dias em homenagem ao artista. A Assembleia Legislativa de Pernambuco, Alepe, também pediu um minuto de silêncio em respeito à sua morte. Cristovam Buarque, ex-senador pelo PPS-DF, comparou a importância do artista à do educador Paulo Freire no Twitter.
Outras personalidades também prestaram homenagens por meio das redes sociais.
Gerson Camarotti, comentarista da Globo News, afirmou que “alquimia do barro [ele] criou um universo mítico”. Marcelo Falcão, do grupo O Rappa, lembrou um clipe filmado na Oficina Brennand e chamou o artista de “mestre do seu tempo e também do nosso”. O escritor Marcelino Freire lembrou que dedicou seu último romance, “Bagageiro”, ao ceramista. Há três anos, Brennand publicou seus diários, quatro volumes que cobrem o período de 1949 a 2013. Ele teve quatro mulheres, a última delas Maria Gorette, com quem viveu até o fim da vida. Deixa cinco filhos, dez netos e dez bisnetos.
OS CADERNOS VERDES
Em fevereiro de 2019, a professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Ruth Vasconcelos lançou a coleção “Os Cadernos Verdes de Francisco Brennand – Uma Leitura” (editora Viva, quatro volumes). O trabalho é fruto de uma pesquisa desenvolvida por Ruth entre os anos de 2017 e 2018. Os quatro volumes da coleção são os seguintes: “Os Nós enigmáticos na Obra de Brennand”; “A Arte de Brennand em Diálogo com a Vida e a Literatura”; “O Diário de Brennand escrito para nomear” e “Do testemunho ao Testamento sobre Vida e Obra de Brennand”. “A pesquisa foi feita a partir da leitura de mais de duas mil páginas referentes aos registros no diário de Brennand de 1949 a 1999, escritos recheados de muitas informações no campo da literatura, artes visuais, cinema, fotografia, mitologia e história, entre outros”, disse a professora na época, acrescentando que os livros analisam, sob a perspectiva da psicanálise, “a dimensão da tragédia e do mal-estar contidos nas obras de Brennand”.