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Caderno B

O LADO SOMBRIO DE VINICIUS DE MORAES

Poemas e contos apavorantes de um dos mais célebres artistas brasileiros inspiram série de terror

Por CLARA BALBI/ FOLHAPRESS | Edição do dia 15/01/2020 - Matéria atualizada em 15/01/2020 às 06h00

Foto: Reprodução
 

Vinicius de Moraes, poucos sabem, era um fã de filmes de terror. Em críticas de cinema que publicou em periódicos dos anos 1940, hoje reunidas em seu site oficial, é só elogios para produções como “Máscara de Fogo”, “Os Mortos Falam”, “A Dama e o Monstro”, “Frankenstein” –o último, escreve o poeta, dono de uma das mais belas cenas já realizadas na história. Vez ou outra, Vinicius chegou inclusive a deixar de lado os sonetos românticos e as composições de bossa nova para se aventurar no gênero, em poemas e contos. Sete desses escritos, produzidos entre os anos 1930 e 1950 e mapeados pela produtora A Fábrica, inspiram a série “Noturnos”, com previsão de estreia no segundo semestre no Canal Brasil. A princípio, a ideia era montar uma antologia. Foi só quando os diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra –que finalizam, juntos, o drama de época “Todos os Mortos”– desembarcaram no projeto que decidiram costurar os textos numa só narrativa, sobre uma companhia de teatro presa no lugar onde ensaia um musical por causa de uma tempestade. Entediados, os atores começam a contar histórias de assombração uns aos outros, sentados em volta de uma goteira. É aí que os textos ganham vida e ocupam a tela, com os próprios membros da trupe, vividos por nomes como Ícaro Silva, Thaia Perez, Rafael Losso e Andrea Marquee, se revezando entre os papéis. Com um porém, alerta Gotardo –o narrador do relato jamais aparece nele. “A ideia é que cada um desses episódios seja uma projeção da imaginação de quem está contando”, diz. A estratégia ainda dialoga com a produção múltipla de Vinicius, que também atuou como dramaturgo. E foi uma maneira que a dupla encontrou de convidar outros diretores para a empreitada, dessa forma livres para interpretar os textos sem se prenderem a uma estética única. A seleção de nomes acabou reunindo uma parte da geração que, nos últimos anos, pôs o terror brasileiro no mapa. Um gênero que, hoje mais comum nos cinemas, tem tudo para conquistar espaço também na televisão, com o anúncio de séries como “Desalma”, da Globoplay, e “Spectros”, da Netflix, ambas classificadas com a etiqueta de “sobrenatural”. A plataforma americana, aliás, lançou no ano passado sua primeira produção brasileira do tipo, “O Escolhido”. Voltando a “Noturnos”, estão lá Gabriela Amaral Almeida, de “O Animal Cordial” e “A Sombra do Pai”, e Rodrigo Aragão, um dos maiores representantes nacionais do gore, horror cheio de vísceras e sangue espirrando. Além de, é claro, Dutra, que assinou com Juliana Rojas “As Boas Maneiras” e “Trabalhar Cansa”. Completam o time nomes menos conhecidos, como Aaron Salles Torres e Vinícius Silva, e Gustavo Vinagre, em sua primeira incursão no gênero. O último, que fez barulho no Festival de Berlim com um longa sobre o ânus, ainda ajudou a escrever o roteiro da série, ao lado de Alice Marcone. Na tela, cada um dos diretores imprime uma variação desse cinema –psicológico, satânico, alegórico, de zumbi. Todos tratam, porém, de questões típicas da realidade brasileira. Uma marca deste novo terror nacional, cujos fantasmas não raro têm a ver com questões de classe e raça. Uma das histórias, por exemplo, se passa no período escravista, numa fazenda em Minas Gerais no século 18. Outra, na Amazônia, no auge da extração da borracha, na década de 1940. Outra ainda aborda o fanatismo religioso que parece ter tomado o Brasil nos últimos anos, ao mostrar a relação entre um pai e o filho transgênero. “Noturnos” pode, então, ser encarada como uma síntese do horror no país? “É uma amostra”, responde Gotardo. “É uma série muito de terror, e muito brasileira.” Uma outra camada do Brasil contemporâneo se infiltra na trama principal. Num dos episódios, um casal de estranhos ajuda um dos atores da companhia, que havia se perdido no temporal, a voltar ao teatro. Conservadores e avessos ao universo artístico - quando a repórter pergunta se os personagens são bolsonaristas, os diretores assentem–, eles protagonizam uma série de embates com o grupo. Até que decidem entrar na brincadeira de contação de histórias. Como o casal não está familiarizado com o grupo, este é o único episódio que tem atores de fora da companhia fictícia. No caso, Marjorie Estiano, que havia trabalhado com Dutra em “As Boas Maneiras” e afirma ter entrado em contato com essa produção alternativa de Vinicius pela primeira vez. Vivendo uma espécie de garota de Ipanema fantasmagórica, de pele muito branca e biquíni e quimono vermelhos, ela seduz o típico macho alfa Anderson de Bruno Bellarmino. “Ele não consegue enquadrar aquela mulher nos padrões que criou”, diz Estiano, sobre sua misteriosa femme fatale. “É uma mulher que parece corresponder a certos clichês do feminino, mas que toma as próprias decisões muito claramente”, concorda Gotardo. Na visão de Estiano, a adaptação vem a calhar –nos textos que inspiraram o episódio, “Conto Carioca” e “Conto Rápido”, a mulher retratada é bem mais etérea do que aquela que interpreta. É uma visão sobre o feminino que se repete na produção de Vinicius, autor, afinal, dos versos “as mais feias que me desculpem/ mas beleza é fundamental”. Dutra ecoa as palavras da atriz. “Tínhamos de jogar com essas noções de masculino e feminino dele. Não somos especificamente fãs loucos, entramos criticamente nesse universo.” Mas, como outros temas atuais discutidos na série, sua presença não estava prevista desde o início, declaram os idealizadores de “Noturnos”. “Quando começamos a desenvolver os roteiros, elas foram brotando. E essa é uma característica do terror, lidar com traumas sociais por meio do imaginário”, afirma Gotardo. “Estamos num momento em que nossas fraturas e feridas estão bem expostas”, emenda Marco Dutra. “Não estamos conseguindo fingir que está tudo bem com essa tempestade que cai lá fora.”

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