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Nº 5856
Caderno B

ELOGIADO ‘1917’ ESTREIA EM ALAGOAS

Crítica se divide e diz que longa constrói ilusão de não ter cortes e que peca ao não desenvolver personagens; filme tem dez indicações ao Oscar

Por CLARA BALBI/ FOLHAPRESS | Edição do dia 23/01/2020 - Matéria atualizada em 23/01/2020 às 06h00

Foto: Reprodução
 

Dois jovens soldados britânicos dormem, encostados numa árvore, num campo ocupado na Primeira Guerra Mundial no início de “1917”. Um oficial os acorda e pede que o sigam. Caminham pela trincheira -as trilhas escavadas na terra exibem placas cujos nomes, “rua Paraíso” e “rua Sortuda”, soam irônicos no cenário. O general então anuncia a missão dos rapazes. O irmão de um deles, que integra um pelotão a alguns quilômetros dali, está prestes a embarcar numa emboscada armada pelos alemães. A tarefa da dupla é, então, impedir o ataque planejado. Os espectadores acompanham cada passo dos soldados, como se tivessem os olhos colados às suas nucas. E eles não desgrudam nos mais de cem minutos seguintes do filme -somos sugados pelo verdadeiro labirinto que é a guerra, enquanto os soldados funcionam como o novelo de lã que guia o caminho. Isso porque o longa, que estreia agora, foi filmado de modo a imitar um plano-sequência, uma tomada única e contínua, sem cortes. Não foi uma tarefa simples. George MacKay, que interpreta um dos jovens, conta que a equipe ensaiou por cinco meses antes das filmagens. Ele e o colega Dean-Charles Chapman corriam por campos vazios, obedecendo a marcas no chão. Os ensaios orientaram não só a coreografia dos atores e da câmera como, em muitos casos, a própria elaboração dos cenários, já que as trincheiras eram escavadas de acordo com o ritmo emocional das cenas e das necessidades da equipe de fotografia. “Em geral, com a edição, é possível ajustar o ritmo do filme, prolongando um momento, ou optando por um ângulo diferente. Mas aqui antecipamos todo o processo. Precisávamos decidir tudo isso antes”, conta o ator. MacKay também afirma que os planos do filme têm cerca de cinco minutos cada um -o mais longo, oito. Para que tudo saísse como planejado, cada tomada foi repetida em média 20 vezes. Uma delas exigiu 54 regravações. “Eu me lembro que, quando ensaiamos alguns dos momentos mais físicos do filme, pensei ‘só consigo fazer isso umas cinco vezes e se vamos fazer 50, tenho que malhar’.” A façanha deu certo, e o filme se tornou um inesperado favorito ao Oscar de melhor filme. Desde o Globo de Ouro, quando o diretor Sam Mendes tirou de Martin Scorsese a estatueta de melhor filme de drama (ele concorria com “O Irlandês”), o thriller acumulou indicações aos principais prêmios da temporada. Mais importante, no fim de semana passado, o longa foi eleito o melhor filme pelo Sindicato de Produtores de Hollywood. A associação acertou 21 vencedores do Oscar nos últimos 30 anos. Pesa contra “1917” o fato de nenhum dos atores do filme -que tem participações especiais da nata britânica, como Colin Firth e Benedict Cumberbatch- ser indicado ao Oscar. Mas a crítica vem apostando em sua imitação de plano-sequência, o que já tinha feito com “Birdman”, de Alejandro Gonzales Iñarritu, vencedor do prêmio há cinco anos. O feito visual pode, então, conquistar a Academia? Walter Carvalho, um dos diretores de fotografia mais celebrados do país e eleitor do Oscar, afirma que não é o fato de a produção parecer um plano-sequência que pode determinar sua vitória. “É muito mais complexo. Tem a questão da política, de quem é a bola da vez, dos velhinhos da Academia, da influência de outros mercados, do Globo de Ouro”, diz. Além disso, declara, planos-sequência têm se tornado cada vez mais comuns. “É engraçado porque ele virou uma espécie de desafio. As pessoas esquecem um pouco que em 1927 já tinha um desses”, diz, lembrando “Aurora”, do expressionista alemão F.W. Murnau. Um dos motivos para essa proliferação é a tecnologia digital, explica o cineasta. Nos tempos da película, os planos-sequência eram limitados ao tamanho dos chassis das câmeras, de cerca de quatro minutos. Os mais longos tinham pouco mais de dez minutos -Alfred Hitchcock usou exatamente 12 desses para montar seu célebre “Festim Diabólico”. E suas estratégias não são tão diferentes daquelas de Mendes agora. Para criar a ilusão de um único plano-sequência, o mestre do suspense aproveita a movimentação dos personagens e aproxima sua câmera de seus paletós, enchendo o quadro de preto. Muitos dos cortes de “1917” também acontecem quando a tela enegrece, depois de explosões ou das mudanças de iluminação súbita que acontecem quando os soldados adentram nos interiores. Walter Carvalho ressalta que a principal mudança que os planos-sequência sofreram de lá para cá foi a motivação por trás de seu uso, hoje muitas vezes técnica, e não narrativa. “Os planos que mais me seduzem não obedecem à tecnologia, mas à linguagem”, diz. “Eles trabalham com a ideia da duração do rolo de filme, e expressam uma narrativa no tempo e no espaço desse rolo.” “Nada contra as tecnologias”, continua o cineasta. Ele lembra que grandes revoluções cinematográficas aconteceram justamente porque a câmera diminuiu de tamanho. “Mas não é a partir da tecnologia que se consegue a emoção extraordinária que o Joaquin [Phoenix, indicado a melhor ator por “Coringa”] transmite através do seu corpo. A crise não é da imagem, é da representação. Nunca se repetiu tantas histórias, nunca se construiu tantos planos-sequência como eles se tivessem nascido ontem.” Carvalho conta que ainda não assistiu a “1917”. Mas, de fato, vale apontar que não só a ideia do plano-sequência, como também o tema da produção é um tanto batido. Filmes de guerra são um dos gêneros favoritos do Oscar e já foram laureados na categoria principal da premiação ao menos outras 15 vezes. Alguns analistas ainda sugerem que o atual conflito entre Estados Unidos e Irã pode fortalecer a mensagem antibélica do longa de Sam Mendes. Resta saber se, depois de tantas vitórias acumuladas, “1917” vencerá também a guerra.

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