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Caderno B

A ERA DA PÓS-VERDADE

Especialista comenta impactos das notícias falsas e diz acreditar que situação pode mudar quando a realidade for imposta, como ocorre com a crise do coronavírus

Por Maylson Honorato | Edição do dia 04/04/2020 - Matéria atualizada em 04/04/2020 às 01h00

Redes sociais repletas de fake news e crise do coronavírus é cobinação desastrosa, avalia o professor Ronaldo Bispo
Redes sociais repletas de fake news e crise do coronavírus é cobinação desastrosa, avalia o professor Ronaldo Bispo - Foto: FastMotion/Shutterstock
 


Era uma promessa encantadora, a internet traria comunicação sem ruídos e intermediações. Em contraponto ao sonho, a realidade se impôs: negação de evidências científicas, notícias falsas, massificação de imagens manipuladas, gurus do absurdo - bem-vindos a era da pós-verdade. Em meio ao caos de uma pandemia, a luta contra as fake news evidencia um outro desafio cultural e histórico desta geração, deter a avalanche de obscurantismo impulsionada por bots, algoritmos, mas, essencialmente, por pessoas.


É isso que defende o professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Ronaldo Bispo, um dos principais pesquisadores em cibercultura e evolução cultural do estado. O doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP diz que as notícias falsas sempre existiram e que foram evidenciadas e amplificadas nesta época, por meio das redes sociais conectadas. Para ele, as chamadas fake news são versões modernas dos boatos, que deixaram de pertencer a um local específico para ganhar a rede mundial de computadores.


“Com a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, talvez o mais importante cargo público do mundo foi ocupado por alguém que insiste em desprezar ou descaracterizar a relevância da imprensa formal. Ele dribla ou simplesmente evita a mediação corporativa, que também tem seus problemas, e comunica-se diretamente com seu leitor, pelo twitter. Ele não parece ter nenhuma vergonha em afirmar e disseminar informações falsas, como se fosse uma versão própria da realidade”, analisa o professor.


A chamada era da pós-verdade é, na realidade, a era do engano, da manipulação. Ela consiste na propagação de crenças baseadas em mentiras. Exemplos claros desta era descrevem a última eleição presidencial no Brasil, quando, por exemplo, informações sobre um suposto “kit gay” foram espalhadas e repercutiram como verdade, mesmo se tratando somente de um boato disseminado com fins eleitoreiros. Outro exemplo está no número crescente de pessoas que passaram a acreditar que a terra é plana. De acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada no ano passado, 7% dos brasileiros acreditam que o planeta tem o formato de um prato, questão que parecia superada séculos atrás.


“O fato é que nós ingressamos numa era, lá atrás, com a explosão dos meios de comunicação, que se aprofunda com uma série de falências, digamos assim”, diz Ronaldo Bispo, referindo-se a uma certa frustração das pessoas com a ciência e com a política.


“Com a explosão dos polos de emissão, surgiu a possibilidade de uma diversidade enorme de pontos de vista, teorias, concepções, etc. Agora, graças a canais de YouTube, perfis de Twitter, entre outras redes, quem não se sente confortável com a visão tradicional e hegemônica tem onde validar suas visões, afinal, tem quem subsidie teorias diversionistas, estapafúrdias, ou fora do eixo. É como se a realidade fosse vista desse modo: eu não concordo com a visão de mundo difundida pelos veículos tradicionais, prefiro uma versão que eu encontro no WhatsApp, no YouTube e que de alguma forma me contempla, me confortam, contemplam o que eu gostaria que fosse a realidade. Seria uma aposta nessa versão confortável da realidade e não naquela que é atestada por evidências e consensos”, completa.


A PRIMEIRA VÍTIMA DA GUERRA É A VERDADE

O velho ditado do meio jornalístico expressa bem o que o mundo acompanha. A propagação de fake news como estratégia política já não é novidade e, anos atrás, já era denunciada por especialistas em tecnologia. Nas últimas eleições estadunidenses, viralizou um vídeo manipulado que mostrava a ex-primeira-dama Michelle Obama se despindo em frente a uma câmera, enquanto outras informações falsas “provavam” que Barack Obama não era americano - o que foi endossado pelo próprio Donald Trump, que disse que Obama era, “um muçulmano nascido no estrangeiro.” No Reino Unido, informações formatadas de maneiras complexas, com dados e planilhas, viralizaram nas redes propagando que o Brexit acrescentaria 350 milhões de libras ao Serviço Nacional de Saúde. Outra fake news.



“Do ponto de vista de quem consome a informação, parece haver um gosto pelas versões em vez dos fatos. Há estudos nessa direção que provam que muitas pessoas resistem quando se deparam com a verdade e preferem ficar com a versão, com o boato, ou com a conspiração que aposta em qualquer versão mirabolante sobre qualquer fenômeno ou realidade”, comenta o especialista.



Um estudo da Kaspersky, empresa especializada em cibersegurança, apontou que 70% dos latino-americanos não sabem identificar se uma notícia na internet é falsa ou verdadeira. A pesquisa, chamada de ‘Iceberg Digital’, também mostrou que 16% não conhece o significado de “fake news”, enquanto 38% dos jovens entre 18 e 24 anos usam somente as redes sociais para se informar. Os cidadãos que menos conseguem reconhecer notícias falsas são os peruanos (79%), seguidos pelos colombianos (73%) e chilenos (70%). Mais atrás estão os argentinos e mexicanos, com 66%, e finalmente brasileiros (62%).



“Assim como os icebergs, nem tudo o que vemos na internet é o que parece ser. Nas profundezas do mar, é possível esconder uma enorme massa de gelo capaz de afundar um navio de uma só vez, se acreditarmos apenas no que se vê na superfície”, diz Fábio Assolini, pesquisador sênior de segurança da Kaspersky no Brasil. A empresa aposta na tecnologia para combater bots que espalham fake news. Essa semana, redes sociais, como o Youtube, Facebook e Twitter, sinalizaram que estão na briga contra as notícias falsas, deletando postagens de Eduardo Bolsonaro, Olavo de Carvalho (pai do bolsonarismo) e do próprio presidente. Todas as postagens continham informações falsas.



Para o professor da Ufal, o aumento dos problemas com a repercussão de notícias falsas pode ser uma esperança para que o mundo comece a lidar com a situação de maneira mais séria. Para ele, atualmente ocorre um fenômeno de retorno do público ao jornalismo profissional.



“Com essa enxurrada de fatos alternativos, fake news, mais gente está buscando informação nos veículos tradicionais. Está aumentando o número de assinantes de jornalismo digital e as pessoas parecem retomar o desejo por informação bem apurada. Isso ocorre em certo público. Há os que querem as notícias bem apuradas e os que preferem permanecer com as versões dos fatos”, diz.



FAKE NEWS E CORONAVÍRUS

Especialista é doutor em comunicação e semiótica pela PUC e possui extensa pesquisa relacionada à cibercultura
Especialista é doutor em comunicação e semiótica pela PUC e possui extensa pesquisa relacionada à cibercultura - Foto: Rafaela Oliveira/Cortesia
 


A mistura de uma pandemia com uma febre de notícias falsas e especulações apocalípticas é potencialmente desastrosa. Mas é justamente com isso que o Brasil está lidando, de acordo com o pesquisador da Ufal. Enquanto o mundo, em isolamento social, discute alternativas para a crise na saúde e na economia, causada pelo novo coronavírus, o Brasil criou fatos políticos.



“Na crise atual, a pós-verdade é ainda mais assustadora. Ela tem se verificado de maneira mais acentuada no caso brasileiro. Se a gente pega outros exemplos, até mesmo a Índia, onde já tivemos notícia de fake news que produziram efeitos desastrosos, como linchamentos, por lá também está sendo praticado o isolamento social, a quarentena, etc sem maiores questões. Aparentemente, neste momento, Bolsonaro, o bolsonarismo, é o último reduto do negacionismo associado à Covid-19”, analisa.



Na opinião de Bispo, o negacionismo associado ao novo coronavírus pode ser uma estratégia política que visa as eleições presidenciais de 2022.


"As consequências são inimagináveis, se as pessoas continuarem apostando que é uma gripezinha e forem para a rua, o número de infectados cresce, o colapso do SUS é certo, o número de mortos aumenta e a economia vai ser ainda mais abalada”, diz.



O professor celebra a internet livre como alternativa para combater as notícias falsas. E considera que é possível que estejamos nos aproximando de uma espécie de limite.



“Parece-me que chega um momento em que a realidade se impõe diante das versões negacionistas. Como as coisas não estão descontroladas, como na Itália, com caixões em série, como ainda não temos essas imagens, o negacionismo se sustenta. Sobretudo em Alagoas, com um número de casos relativamente pequeno. A situação pode melhorar quando a questão explodir, como aconteceu nos EUA e na Inglaterra, onde os chefes de estado foram obrigados a reconhecer a ciência. Talvez, aí, fique impossível continuar negando a realidade. Mas olhe que ainda haverá aqueles que, mesmo diante da morte, dirão, 'não, não foi coronavírus, não é bem assim'”.

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