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Nº 5694
Caderno B

Ninguém é um número

Alagoanos no projeto “Inumeráveis” registram histórias dos mortos pela Covid-19 em memorial virtual e celebram a vida das vítimas da pandemia em Alagoas

Por Maylson Honorato | Edição do dia 23/05/2020 - Matéria atualizada em 23/05/2020 às 05h00

“Ricardo ia ser um pai completo. Não teve tempo.”
“Ricardo ia ser um pai completo. Não teve tempo.” - Foto: Reprodução
 

A frieza das estatísticas há muito camuflam o que realmente se tem perdido durante a pandemia do novo coronavírus: vidas. No Brasil, são mais de 20 mil vidas. Em Alagoas, mais de 250 vidas. São pessoas, com famílias, ideias, histórias e sonhos. Nenhuma delas é um número.

Foi a partir dessa constatação que artistas e jornalistas brasileiros criaram o ‘Inumeráveis’, projeto lançado no final de abril, com o intuito de reverter a lógica fria pela qual a pandemia está sendo tratada no Brasil.

A ideia é reunir as histórias das vítimas da Covid-19 em um memorial online, acessível para familiares e para todos os dispostos a descobrir, por trás desses números todos, a Dona Maria Lúcia, alagoana que vivia em São Paulo, onde faleceu em decorrência do famigerado vírus.

“Di era uma corintiana fanática, brincalhona e que adorava implicar com seu marido palmeirense, com quem viveu praticamente a vida inteira. Em 50 anos de casamento, Tonho e Di foram pais de seis filhos: Alda, Luiz, Adalberto, Aldo, Júnior e Aguinaldo. Generosa e bondosa com suas irmãs e amigas, Di se tornava uma leoa quando mexiam com seus filhos e netos, defendendo-os com unhas e dentes. [...] Suas últimas palavras foram dedicadas ao esposo, a quem dava o primeiro bom dia e o último boa noite. - Tonho, volto logo.”

A história narrada pelo jornalista alagoano Josué Seixas, a partir de depoimentos de familiares da Dona Maria Lúcia, é uma das milhares de memórias preservadas no memorial Inumeráveis. Para o jornalista, que há 15 dias se dedica voluntariamente à apuração e ao registro de histórias como essa, diante dos números em crescimento e do fluxo frenético das notícias, é necessário parar e perceber que cada uma das mais de 20 mil vidas perdidas é importante.

“Muita gente está falecendo e parece que quanto mais gente morre, menos as pessoas ligam. E quando a gente escreve um texto sobre aquela pessoa, a gente está eternizando ela para uma família inteira e para todo mundo que possa querer conhecer, para um amigo que sentiu saudade”, conta Josué.

O Inumeráveis conta com uma rede voluntária de jornalistas, estudantes escritores e contadores de história, de Norte a Sul do país, para narrar as histórias de forma sensível, pessoal e respeitosa às peculiaridades da vida de cada vítima, estimulando um processo reconfortante.

“Eu entro em contato com as famílias, converso um pouco, e a gente vê o quanto aquela pessoa é importante. As pessoas não são números. É um absurdo que algumas pessoas minimizem a situação, achem que a pandemia é uma brincadeira, que falem de remédios”, pontua.


“NÃO HÁ QUEM GOSTE DE SER NÚMERO. GENTE MERECE EXISTIR EM PROSA”

O projeto Inumeráveis começou com o artista plástico Edson Pavoni. Ele conta que desde os 17 anos lida com o “incômodo do cotidiano não humanizado”, se referindo ao fluxo de notícias trágicas nas grandes cidades, o que faz com que muitas pessoas “se acostumem” com um dia a dia violento. Ele se juntou à jornalista Alana Rizzo e ao empreendedor Rogério Oliveira para tirar a ideia do papel. Oito profissionais atuam no núcleo da iniciativa, entre artistas e comunicadores, além de 23 jornalistas voluntários, atuando colaborativamente e de forma descentralizada.

“O Inumeráveis nasce do incômodo em perceber que nas tragédias humanitárias pela qual a humanidade passa, transformamos as vidas perdidas apenas em números e estatísticas. Pandemias, guerras, genocídios, desastres recentes como Brumadinho. Não valorizamos, não registramos a vida, a história de cada única pessoa que todos nós perdemos. Hoje temos tecnologia e um sistema distribuído que pode colaborar para termos a ambição de registrar 100% das histórias, de cada pessoa” - explica Rogério Oliveira.

A plataforma digital permite duas possibilidade de colaboração: a) direcionada para jornalistas, estudantes de jornalismo e outros profissionais que queiram reportar uma história; b) e outra direcionada para familiares e amigos que gostariam de prestar uma homenagem à vítima a partir de um depoimento.

“A minha motivação é eternizar histórias e fazer com que ninguém esqueça que a gente passou por isso. Que todo mundo lembre que pessoas sofrem, estão sofrendo todos os dias. quando escrevo é uma tentativa de diminuir a dor dessas famílias”, diz o alagoano Josué Seixas.

“A gente não pode se abraçar agora, então a gente se abraça por meio das palavras. Eu abraço cada família sobre as quais escrevo, por meio das palavras, pelo que coloco no texto, por meio da dedicação, por meio dessa conversa. É difícil. Mas é importante demais fazer isso. É uma questão humanitária. Estamos espalhados por todo o Brasil nesse projeto, abraçando essas famílias. Essa é a mensagem do Inumeráveis: toda vida é importante, ninguém é número”, finaliza.


MEMORÁVEIS

Inspirados pelo Inumeráveis, alagoanos também se mobilizam para dar nome aos números que aparecem diariamente nos noticiários. Criado como uma extensão do original e um projeto de extensão da Universidade Federal de Alagoas, o “Memoráveis” tem contribuído com o memorial nacional e vai além: pretende unir aos chamados textos-tributos, produções audiovisuais com as histórias das vítimas fatais da pandemia. Idealizado pela professora Mércia Rodrigues, o projeto já conta com 26 integrantes voluntários: 2 professores, 3 jornalistas e 21 estudantes de jornalismo.

“A gente cumpre duas funções. Inicialmente damos uma resposta à sociedade sobre essas vítimas, que sequer tiveram a oportunidade de terem seus corpos velados ou de se despedirem das suas famílias. E também contribuímos com a formação dos alunos. Dividimos o trabalho em quatro grupos de trabalho: o primeiro é responsável pela apuração; o segundo é por redação, edição e revisão; o terceiro é de divulgação e o quarto é o de audiovisual. Imaginamos o projeto como uma grande redação”, explica a coordenadora.

Waldson Costa, professor convidado do projeto, reforça que a ideia do memorial regional é potencializar memórias e fazer registros das vidas para além dos números de mortos. “Memórias são linhas que ligam presente, passado e futuro. Portanto, este projeto nos possibilita registrar memórias para que no futuro tenhamos uma dimensão mais palpável do que ocorreu, para que assim possamos ler o presente e pensar o futuro”, explica o professor.

Lisa Gabriela Santos, estudante de jornalismo e voluntária no projeto, diz que está se preparando para exercitar o olhar sobre o outro e sobre a dor. “Falar sobre memória é falar sobre história. Nosso futuro é construído com base nos registros que temos do passado, e é importante pensar em como vamos falar sobre a pandemia para as próximas gerações”, conta a aluna. 

Para compartilhar histórias, relatos, homenagens e quaisquer outras contribuições para o Inumeráveis Alagoas, os canais de contato são o e-mail [email protected] e o WhatsApp (82) 99954-6033.

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