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Caderno B

“O GILBERTO VAI FICAR”

Legado do Mestre Gilberto da Silva envolve juventude que não abre mão de manter viva a tradição dos Bobos

Por Editoria de Cultura | Edição do dia 29/07/2020 - Matéria atualizada em 29/07/2020 às 14h25

No começo do ano, coletivo de jovens deu primeiro passo para preservar tradição mantida por mestre Gilberto
No começo do ano, coletivo de jovens deu primeiro passo para preservar tradição mantida por mestre Gilberto - Foto: VIVIANE LIMA / CORTESIA
  

Se reconhece um mestre popular. Ele é identificável. Ninguém aponta, elege ou se afirma. É como se a natureza escolhesse. Lá em Tatuamunha, povoado tão lembrado quanto esquecido de Porto de Pedras, Gilberto Antônio da Silva era mestre no dia a dia, com simplicidade e potência capazes de inspirar a juventude. Ele partiu no último domingo (26), aos 71 anos, após mais de meio século dedicado à feitura de máscaras artesanais, com um significado perene para a cultura popular e identidade dos alagoanos, dos porto-pedrenses.

A brincadeira dos bobos, expressão popular carnavalesca, é uma tradição secular do Litoral Norte alagoano, que consiste na caracterização dos brincantes de carnaval em criaturas pitorescas, ora inspiradas em animais, ora inspiradas no imaginário, na inversão do cotidiano. Além das máscaras, os antigos foliões utilizavam adornos, folhas e roupas velhas, chegando até mesmo a cobrir mãos e pescoços, tudo para que ninguém soubesse quem era quem.

A expressividade única dessa manifestação deve muito ao capricho imaginativo das máscaras, normalmente feitas com barro, goma de mandioca, papel e tintas. Antigamente, os próprios moradores elaboravam os adereços, cada um fazia a sua máscara. Porém, desde o final dos anos 1990, Mestre Gilberto era o único a continuar a feitura, era o guardião remanescente desse saber.

Pedreiro por profissão, ele nunca deixou de lado o ofício de mascareiro. As primeiras máscaras do artista foram confeccionadas ainda na adolescência. Aprendeu a técnica sozinho, para brincar ao lado dos amigos. Na época, os bobos dominavam as ruas de Tatuamunha. “Com o tempo foi diminuindo, os mais velhos foram morrendo, e essa turma mais nova gosta de outras brincadeiras”, lamentou ele em entrevista à Gazeta de Alagoas.

Seu Gilberto morreu em decorrência de complicações após um infarto. Além da inestimável contribuição para a cultura de Alagoas, ele deixa filhos e esposa, D, Maria Luíza, que também atuava na confecção das máscaras.

LEGADO DO MESTRE

Mestre Gilberto começou a produzir máscaras ainda na adolescência
Mestre Gilberto começou a produzir máscaras ainda na adolescência - Foto: Reprodução/Novos Para Nós
 

Seu Gilberto dizia que somente pararia de confeccionar máscaras quando morresse e, aos 71 anos, continuava produzindo bobos inusitados, misturando figuras da própria imaginação às formas observadas no cotidiano interiorano. Essa resistência chamou a atenção de três amigos de infância, conterrâneos do Seu Gilberto, que se uniram para resgatar a tradição dos bobos. Assim nasceu o projeto “Bobo Gaiato”, que teve seu pontapé inicial no começo deste ano, com a saída do bloco carnavalesco Bobo Gaiato, considerado a ação-piloto do coletivo.

Encabeçado por Alexandre Marlon, Thiago Souza e Sebastian Paiva, o coletivo assumiu a missão de salvaguardar a tradição do carnaval dos mascarados, como uma estratégia de resgate identitário. Durante a programação no começo do ano, os jovens convidaram o Mestre Gilberto para ministrar uma oficina de máscaras para crianças e adolescentes da região.

“Seu nome será honrado em cada ação desempenhada por nós. Em cada máscara produzida. Em cada estandarte que se levantará. Nas andanças dos Bobos que virão. Entoaremos a energia de Seu Gilberto com voz altiva e de agradecimento infinito. Obrigado Mestre”, publicou o coletivo nas redes sociais.

Thiago Souza, um dos fundadores do projeto, é mestrando em Sociologia e pesquisa a tradição dos Bobos em Porto de Pedras, com o intuito de chegar a uma história oficial dessa manifestação cultural. De acordo com ele, Seu Gilberto foi o responsável pela sobrevivência do saber, já que continuou com a feitura das máscaras quando até mesmo a brincadeira tinha praticamente desaparecido. O pesquisador e produtor cultural também publicou uma despedida emocionada nas redes sociais.

“Seu Gilberto mudou minha maneira de ver e sentir nossas manifestações culturais. Ele trouxe as cores e as luzes que faltavam. Sou imensamente grato por isso. Compartilhando as cores e as luzes dadas pelo mestre, seguirei exaltando seu nome e seu legado para o artesanato alagoano e para a cultura dos Bobo em Porto de Pedras. Seu Gilberto, estará presente! Hoje e sempre!”

Celso Brandão foi o primeiro comprador das máscaras de Seu Gilberto e maior incentivador
Celso Brandão foi o primeiro comprador das máscaras de Seu Gilberto e maior incentivador - Foto: Cortesia/Celso Brandão
 

O primeiro comprador das máscaras de Seu Gilberto foi o realizador audiovisual alagoano Celso Brandão, que acabou desempenhando o papel de grande incentivador do Seu Gilberto, segundo o próprio mestre.

Pelas mãos e pelas lentes de Celso, as máscaras do Seu Gilberto se espalharam pelo mundo. Algumas das fotografias e vídeos de Celso Brandão se tornaram verdadeiros patrimônios da cultura alagoana, ajudando a salvaguardar detalhes do processo de feitura das máscaras e dos Bobos nas ruas de Porto de Pedras.

“Minha convivência e admiração pelo mascareiro Gilberto de Tatuamunha teve início num sábado de carnaval dos anos 90, quando, por tradição materna, ele botava o bloco na rua, inflamando os foliões desse belo povoado, com ritmo africano e o poder ancestral da mascarada. Sr. Gilberto parte, mas nos deixa a alegria e o conforto de seu inestimável legado”, disse Celso Brandão à reportagem.

São João, jovem artista e pesquisador da cultura popular alagoana, também emprestou sua voz nas redes sociais para falar do impacto da partida do Seu Gilberto. O cantor disse que quando conheceu o mestre, o procurou para agradecer pela resistência, “apesar da juventude”.

“Apesar de nós porque na nossa juventude naturalizamos construções de imaginários felizes nos grandes centros urbanos e tomados por ignorância excluímos os interiores desse País. Os grandes centros urbanos são apáticos e sem cor. Não existem Gilbertos nos grandes centros urbanos”, disse o artista.

“Com a ida do Mestre, portanto, emerge a necessidade e a responsabilidade que pesa sobre os ombros da juventude de Tatuamunha e região. Esse estandarte não pode baixar e não vai. A cada novo dia ‘que refulge ao sorrir das manhãs’ eu aumento a minha convicção de que estou no caminho certo e que meus estudos, minha arte e minhas utopias existem por e para a manutenção dessa beleza cultural que batuca, colore e dá sentido às Alagoas”, concluiu o jovem.

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