PANDEMIA EM FOTOS
Festival virtual com mais de 14 mil trabalhos constrói diário das dores e estranhezas do confinamento e mostra como a pandemia virou do avesso a vida dos brasileiros
Por MARINA LOURENÇO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 25/08/2020 - Matéria atualizada em 25/08/2020 às 05h00
Ainda é cedo para dizer como os livros de história apresentarão a pandemia do novo coronavírus, mas é evidente que já há um vasto acervo de imagens disponível, e ele deve continuar crescendo. As transformações causadas pela doença vêm proporcionando perspectivas plurais, que narram desde a intensa busca por uma vacina até os sentimentos surgidos durante o período. Mesmo que os relógios mantenham a mesma dinâmica, a percepção do tempo se tornou outra. O distanciamento social impôs um novo código de sensações às pessoas, que se viram obrigadas a mudar a rotina. Criar obras de arte sobre —e sob— tantas mudanças não é uma tarefa simples, mas é o que vem instigando milhares de fotógrafos ao redor do mundo. Ruas vazias, céus limpos, uso de máscaras, profissionais da saúde, caixões, rotinas do confinamento, angústia e dor são algumas das circunstâncias atuais que viraram fotografias. Seja com máquinas fotográficas, webcams, celulares ou drones, as imagens captadas tentam ilustrar um novo mundo. “É um material para durar por muito tempo e a cada ano que passar, ficará mais interessante”, diz Eugênio Sávio, curador do Festival de Fotografia de Tiradentes, que ao lado dos coletivos FotoRio, Fotofestival Solar e Doc Galeria organizou o “Por Dentro de um Tempo Suspenso”, projeto visual que retrata a pandemia no Brasil. “O que ficará dessa pandemia serão as histórias, é claro. Mas não será só isso. Terão também as imagens”, continua. “Para muitos, o ato de fotografar [no período] funcionou como algo terapêutico. Serviu para criar e pensar sobre si mesmo.” “Por Dentro De Um Tempo Suspenso” surgiu depois do adiamento da décima edição do Festival de Fotografia de Tiradentes, que ocorreria em março deste ano, e chegou a reunir mais de 14 mil trabalhos, produzidos por cerca de 1.200 brasileiros, de todas as regiões do país. Segundo Sávio, nenhum dos organizadores do projeto imaginava que o número de inscrições fosse tão alto, nem que os participantes se empolgassem tanto com a ideia. “O site [de inscrição] quase entrou em colapso”, relata. Os arquivos enviados terão diferentes usos e cada um dos coletivos propõe e estuda algumas ações para aproveitar esse material. Com postagens frequentes no Facebook e Instagram, as imagens têm sido divulgadas remotamente e atraído centenas de admiradores. Enquanto o Fotorio cogita transformar parte desse acervo em lambe-lambe e projeções ao ar livre pela cidade do Rio de Janeiro, o Festival de Fotografia de Tiradentes prepara um vídeo-divulgação das fotos para as redes sociais, o Fotofestival Solar planeja um uso político das imagens e a Doc Galeria prevê a realização de mostras físicas quando possível. Além desses usos, a organização também quer futuramente publicar um fotolivro, lançar um site ou fazer uma exposição com todas as 14.239 fotografias enviadas ao “Por Dentro de um Tempo Suspenso”. “Achamos que seria uma coisa de registro histórico, mas depois vimos que era uma experiência muito maior”, diz Sávio. Segundo ele, essas fotos têm um tom performático e retratam a individualidade de cada fotógrafo diante da pandemia. Mas aguçar a criatividade diante de tanta mudança pode ser bem difícil. Demorou para que o fotógrafo Lucas Sirino, de 21 anos, um dos inscritos no projeto, compreendesse a dinâmica de fotografar em meio ao surto da Covid-19. “É algo totalmente bizarro. Tem a questão de segurança e escassez, então tem sido um desafio”, afirma o fotógrafo. “Com o tempo, as coisas foram voltando, eu aprendi a me questionar mais, me ouvir mais e vi muitas histórias interessantes.” Os protestos de motoristas de aplicativos, ocorridos recentemente no país, também fazem parte desse tempo suspenso, segundo Sirino, que escolheu enviar registros do assunto ao projeto visual. “Eles [entregadores] são um pilar da economia durante a quarentena. Isso está totalmente entrelaçado com o momento em que a gente vive. Eu sou de quebrada, na minha rua deve ter uns dez entregadores. Isso faz parte da minha perspectiva de quarentena, do meu tempo suspenso.” Antonia Muniz, de 30 anos, fotografou a si mesma diante de velas acesas para retratar as mortes e o luto tão marcantes na atualidade, que segundo ela, estão sendo banalizados gradativamente. O uso de estéticas artísticas mais conhecidas também aparecem nas fotos. Fotógrafos como Amorim de Castro, Angelo Arantes e Vithor Mareco mergulharam no surrealismo para narrar a vida em confinamento. Além de muitos autorretratos, há também amigos e familiares dos fotógrafos no acervo. Nil Canine, de 48 anos, usou a tecnologia dos drones para fotografar aqueles de quem sente saudade em suas sacadas e janelas e fez sucesso nas redes sociais. “Virou um jeito de as pessoas se expressarem. Teve choro, riso, de tudo”, diz ela, que promete publicar um fotolivro do ensaio chamado “Na Janela” e, após o fim da pandemia, promover uma festa com todos os fotografados para celebrar seu trabalho. Mas, como o fim do período ainda é algo distante —e a busca por uma vacina é frenética e intensa—, fotógrafos vão registrando o evento histórico, mesmo com dificuldades, como lembra Amorim de Castro, de 27 anos, participante da mostra virtual. “Driblar o confinamento é termos em nossa consciência que somos bem maiores que as paredes que nos isolam do mundo e que podemos estar fora, mesmo estando dentro”, diz ele.