POR TRÁS DAS PALAVRAS
Ao dissecar o charme do dicionário Aurélio e como ele se tornou pop, livro também evidencia “personalidade de artista” do estudioso alagoano
Por DA EDITORIA DE CULTURA/ COM FOLHAPRESS | Edição do dia 15/12/2020 - Matéria atualizada em 15/12/2020 às 04h00
“Por Trás das Palavras”, livro de Cezar Motta, é a biografia sucinta de um livro enorme. O longo subtítulo tem tons dramáticos -”As Intrigas e Disputas que Marcaram a Criação do Dicionário Aurélio, o Maior Fenômeno do Mercado Editorial Brasileiro”. Faz sentido.
O desempenho fenomenal da obra tem tradução numérica. Do lançamento, em 1975, até o fim do contrato com a editora Nova Fronteira, em 2003, o mais querido e popular dicionário brasileiro -que em qualidade só seria superado pelo Houaiss, já neste século- tinha vendido 15 milhões de exemplares. Sucessos desse tamanho têm muito de imponderável. É claro que nada parecido com isso estava nos cálculos da editora quando saiu a primeira edição de 18 mil exemplares do dicionário -ambiciosa para um tijolo de 1.536 páginas e 120 mil verbetes. No entanto, o Aurélio já nasceu com charme pop. Seu titular foi logo parar no centro da roda de entrevistadores do semanário Pasquim. A apresentação coube a seu amigo -e filólogo amador- Millôr Fernandes. “Conheci Aurélio Buarque de Holanda Ferreira nas rochas de Nínive, há 280.007 anos”, disse ele então. Para um dicionarista da Academia Brasileira de Letras, o homem tinha carisma incomum. “O Aurélio era apaixonante”, diz o autor de “Por Trás das Palavras”, que há dois anos publicou também “Até a Última Página: Uma História do Jornal do Brasil”. O perfil do estudioso alagoano traçado por Cezar Motta combina mais com um artista do que com um lexicógrafo. Boêmio, indisciplinado, romântico, amante da boa mesa e da conversa noite adentro, com os bolsos sempre cheios de papeluchos onde anotava novas palavras, definições e abonações literárias que caíssem no colo dele. Esses traços sedutores eram os mesmos que faziam dele um profissional visto por seus editores como pouco -e logo nada- confiável. “Era incapaz de cumprir prazos”, resume Motta. Aí entra em cena o segundo personagem principal do livro, antípoda perfeito de Aurélio em tudo, menos no sonho de pôr de pé um monumento lexicográfico: Joaquim Campelo. Se o sucesso de público do dicionário Aurélio é impensável sem a personalidade exuberante do homem que o batizou, a história contada por Motta deixa claro que, sem Campelo, a obra nem existiria. Intelectual maranhense da geração de Ferreira Gullar e José Sarney, o jovem Campelo foi aluno de Aurélio na Fundação Getúlio Vargas na década de 1950. Seduzido pelo brilho do mestre e interessado no aprendizado que a proximidade prometia, começou a colaborar com ele de graça em diversos projetos -sobretudo o da atualização do “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, da editora Civilização Brasileira, com o qual Aurélio estava associado desde os anos de 1940. Campelo é descrito com riqueza de adjetivos. “Aplicado, detalhista, estoico, capaz de trabalhos solitários em recintos fechados por várias horas, desconfiado, casmurro, alto para os padrões da época, magro, ascético, com um rosto moreno encovado em que se aninhavam fartos bigodes em forma de trapézio, às vezes acompanhados de cavanhaque”. Bom apurador, Motta reconstitui com a mesma meticulosidade -que em alguns momentos chega ser excessiva, pesando na leitura- a trama por trás da gestação de um dicionário que a maior parte do meio tinha passado a ver como condenado ao fracasso. Quando, em 1969, com todos os prazos estourados mais uma vez, a editora Delta rescindiu o contrato firmado com Aurélio para a preparação de sua grande obra, o filme do filólogo parecia queimado de vez. Coube a Campelo, seu braço direito, levantar empréstimos para montar uma empresa e impedir que o trabalho já realizado se perdesse. A J. E. M. M. tinha no nome as iniciais dos quatro auxiliares principais da estrela da companhia -o J era de Joaquim Campelo e o último M correspondia a Marina Baird, que era a mulher de Aurélio. O que poderia ser uma história com final feliz se transforma em inimizade e disputa judicial depois que a J. E. M. M. começa a ser alijada por Aurélio e Marina dos novos contratos -primeiro no ano de 1985, quando sai a versão míni, e em definitivo com a transferência da obra para a editora Positivo, em 2003.
A briga foi parar no Supremo Tribunal Federal e terminou cinco anos atrás com a derrota de Campelo, hoje com 89 anos. Embora o ex-auxiliar de Aurélio seja uma das fontes de Motta, de quem foi colega na Comunicação do Senado Federal, “Por Trás das Palavras” evita tomar o partido da parte fraca –algo que o leitor pode se inclinar a fazer por conta própria. “Campelo é muito ressentido, usa adjetivos pesados para qualificar o Aurélio. Preguiçoso, por exemplo, ele não era. Não se pode atribuir à preguiça sua dificuldade de lidar com o lado prático da vida”, afirma Motta, que atribui o conflito com os ex-colaboradores a Marina Baird, que morreu em 2015. “O Aurélio seguia muito o que a mulher dizia. Era ela quem cuidava dos contratos. É mais ou menos como na relação de Caetano Veloso e Paula Lavigne”, compara. Como nas melhores histórias, os conflitos por trás do dicionário Aurélio não cabem direito no verbete “maniqueísmo”.