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Caderno B

E SE FOSSE DE OUTRO JEITO?

Filmes e séries de época, como ‘Bridgerton’, reescrevem história com passados sem preconceitos

Por DA EDITORIA DE CULTURA/ COM FOLHAPRESS | Edição do dia 19/01/2021 - Matéria atualizada em 19/01/2021 às 04h00

Foto: Divulgação
 

É a temporada de debutantes na Inglaterra do início do século 19. Cada jovem dama da aristocracia é apresentada à rainha e passa a frequentar eventos sociais pomposos em busca de um marido. Um dos mais aguardados bailes acontece na propriedade de Lady Danbury, onde as saias dos vestidos se aglomeram no salão e formam um emaranhado de cores que se entrelaçam delicadamente. Eis que uma figura esbelta surge na multidão e capta a atenção dos convidados. É o duque de Hastings e, ao contrário do que os leitores da série de livros “Bridgerton” e outros fãs de romances de época esperavam, ele é um homem negro -e não atrai os olhares pela cor de sua pele, mas por ser o solteiro mais respeitado e cobiçado de Londres. Lançada no final do ano passado, a adaptação da obra para a TV tem frequentado as listas de mais vistos da Netflix. Para além do poder de persuasão de sua trama novelesca, “Bridgerton” tem suscitado debates por apresentar uma aristocracia inglesa muito mais diversa do que ela foi na vida real. Nos bailes da alta sociedade das telas, personagens brancos, negros e asiáticos dançam juntos como se a Inglaterra da época não comandasse um império com colônias em todos os continentes do globo, que, por sua vez, fazia uso de mão de obra escrava. A decisão faz sentido se levado em conta que o seriado é uma produção de Shonda Rhimes, hoje uma das figuras mais poderosas da TV americana, habituada a inserir a diversidade em suas séries de maneira naturalizada. Além disso, ela segue uma tendência que vem sendo observada na indústria nos últimos anos, o “color- blind casting”, ou algo como uma escolha de elenco cega à cor da pele. É uma seleção de atores que ignora a etnia ao distribuir os papéis. Há ainda a chamada escalação não tradicional, que se estende a características como gênero e corpo. Outras produções que seguiram essa tendência incluem o live-action de “A Bela e a Fera”, que apesar de ser um conto de fadas é ambientado na França do século 18, e “Duas Rainhas”, que põe a atriz de origem chinesa Gemma Chan na corte de Elizabeth 1ª. Ainda neste ano, deve estrear uma nova versão de “Macbeth”, com Denzel Washington no papel do rei da Escócia. Mas apesar de o termo “color-blind casting” ter fervilhado nas discussões sobre “Bridgerton”, a obra engana seus telespectadores. Lá para o meio da série, descobrimos que os atores negros em papéis de nobres estão, sim, em cena por um motivo. A trama faz uma provocação à ascendência da rainha Charlotte, que segundo pesquisadores seria mestiça -traço apagado dos livros e retratos. Mesmo que não apareça na saga literária de Julia Quinn, a monarca, na adaptação para a TV, é interpretada por uma atriz negra, que ostenta altas e glamorosas perucas -com referências ao black power. Durante uma conversa, ficamos sabendo por Lady Danbury, também negra, que “éramos duas sociedades separadas, divididas pela cor, até um rei se apaixonar por uma de nós”. “O que chamamos de história é contado por um mesmo ponto de vista. Precisamos entender os apagamentos feitos ao longo dessa história. A premissa de ter uma rainha afro-descendente, trazendo um debate para o centro da trama, é interessante porque mostra que nós negros possivelmente estávamos lá. A série é menos uma provocação e mais uma possibilidade”, diz Ana Paula Alves Ribeiro, antropóloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mas, mesmo sendo calcada em pesquisas que sugerem uma corte mais plural no século 19, a diversidade de “Bridgerton” também atraiu detratores. Houve quem dissesse que a obra é uma péssima aula de história, por exemplo. Já outros apontaram que ela apaga a luta pelos direitos da população negra e inviabiliza relatos de fato plurais, dando a falsa sensação de diversidade. “Vitória seria não precisar dessas apropriações; vitória seria contar histórias novas com vozes novas”, escreveu o colunista João Pereira Coutinho nas páginas deste jornal. A intenção, porém, nunca foi fazer de “Bridgerton” uma série realista. Ela é uma ficção, vêm dizendo seus produtores, algo corroborado por delírios amorosos e a trilha sonora pop, que a cobrem com um verniz de conto de fadas. Segundo Fernanda Oliveira, historiadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é preciso cuidado ao separar realidade e ficção. Obras como “Bridgerton”, diz, são ótimas para aumentar a diversidade nas telas, mas em paralelo deve haver um debate acadêmico, nas salas de aula, que amplie esse tipo de discussão. “O papel da arte é imaginar outros mundos, e isso a diferencia da história. Ela nos permite imaginar um passado para projetar um futuro. Nós não podemos alterar o passado, negar que aquela riqueza [da aristocracia inglesa] era possibilitada por um histórico escravocrata, mas não podemos engessar a ficção, porque ela nos faz refletir sobre a sociedade de hoje”, afirma. Tanto ela quanto Alves Ribeiro, a antropóloga, reiteram, no entanto, que a diversidade nas produções também segue uma lógica de mercado. Cada vez mais, estúdios têm notado que, ao representar um público amplo, podem ao mesmo tempo ampliar sua audiência. E, se por um lado “Bridgerton” aposta numa diversidade racial, a série vem sendo acusada de “queerbaiting” -quando uma relação homossexual é insinuada, mas nunca consumada. Em seu trailer, o título exibiu com destaque uma cena de sexo gay, embora os episódios não se aprofundem em personagens LGBTs. Estratégias de audiência à parte, “Bridgerton” é uma produção que imagina um passado alternativo. Esse tipo de roteiro agora está em alta na TV e no cinema, seja para brincar com eventos importantes, como Quentin Tarantino fez em “Era Uma Vez em Hollywood”, ou pela diversidade. Também lançada pela Netflix, a série “Hollywood” faz isso muito bem. Enquanto Shonda Rhimes advoga pela pluralidade racial na TV, o produtor do título, Ryan Murphy, faz o mesmo pelos LGBTs. Em “Hollywood”, ele imagina uma indústria cinematográfica dos anos 1950 muito mais tolerante a questões raciais e à homossexualidade. Gays flertam abertamente nas festas e uma jovem negra é escolhida –e celebrada– como a protagonista de um grande longa americano. Depois do sucesso, o estúdio da trama decide investir num filme de romance com dois homens. Nos palcos, outra produção que embaralhou a etnia dos personagens, dessa vez verídicos, foi “Hamilton”. O musical acompanha um dos pais fundadores dos Estados Unidos e tem elenco composto quase inteiramente por negros, latinos e asiáticos, em papéis como o de George Washington. Intérprete do vice-presidente à época Aaron Burr, Leslie Odom Jr. diz que essas releituras servem como um primeiro passo em direção a uma sociedade mais integrada e justa. “Nós aprendemos a história do mito da América, que convenientemente deixa de fora as experiências dos indígenas e dos escravizados”, ele afirma. “A subversão que ‘Hamilton’ faz nos leva a refletir sobre quem é que conta a história que nos é ensinada.”

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