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Caderno B Na trama alemã, jornada do herói é marcada pela sordidez

‘Berlin Alexanderplatz’ traz ecos expressionistas em nova versão

Longa, que estreia hoje, introduz mudanças significativas em relação às adaptações anteriores

Por INÁCIO ARAUJO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 18/02/2021 - Matéria atualizada em 18/02/2021 às 04h00

A nova versão de “Berlin Alexanderplatz”, que estreia agora nos cinemas, introduz algumas mudanças significativas em relação às adaptações cinematográficas anteriores do livro de Alfred Döblin de 1929.

A primeira e mais relevante diz respeito ao personagem central, que deixa de ser um homem que deixa a prisão após quatro anos, cumpridos por assassinato involuntário da namorada. Agora, ele é um refugiado africano que chega à Alemanha a nado, presumivelmente depois do naufrágio do bote em que fez a travessia.

Ele aporta em Berlim disposto a se livrar dos pecados do passado e a se tornar “um homem bom”, como informa a voz de sua mulher, que morreu afogada após o naufrágio e cuja voz servirá ao mesmo tempo de narradora e de consciência do protagonista.

A inovação, no que diz respeito ao personagem, parece pertinente. Nos dias atuais são os refugiados na Europa -e não só- que melhor correspondem aos miseráveis alemães de 1929 ou 1930 mostrados em ao menos duas versões da história para o cinema, sendo a mais conhecida a dirigida por Rainer Werner Fassbinder em 1980.

Na nova versão, o refugiado ganha o nome de Franz, como o Franz Biberkopf original, e um passaporte falso fornecido pelo perverso Reinhold, seu suposto amigo.

Franz insiste em se manter um bom homem. No entanto, o meio que frequenta não ajuda, e ele se vê metido em ocupações mais que duvidosas, como o tráfico de entorpecentes, e a rigor refém da máfia que Reinhold secretamente planeja controlar.

É aí que a trama ganha uma direção surpreendente, sobretudo pela narração em off da finada mulher do refugiado, que insiste na noção de destino. Não é uma noção vazia. Ela remete, justamente, ao expressionismo do livro original. Já para Fassbinder, todos os males vinham da Alemanha. Todas as perversões começavam e terminavam no país. Filme a filme, sua crítica social foi de uma dureza quase inigualável.

Mas, é inegável, a Alemanha é um dos países mais bem-sucedidos do mundo hoje, e um dos mais tolerantes na Europa em relação a refugiados. Buran Qurbani, que dirige este novo “Berlin”, não deixa de notar a xenofobia e o racismo como elementos atuantes na cultura do país. Também acentua o caráter neoliberal de certas relações profissionais (como a da bela prostituta que atende por Kitty e, na verdade, se chama Mieze).

Em todo caso, o essencial para o refugiado será sempre sobreviver, seja por que meio for. E os modos de Franz o arrastam para tudo, menos a vida de um “homem bom”.


Na trama alemã, jornada do herói é marcada pela sordidez
Na trama alemã, jornada do herói é marcada pela sordidez - Foto: Divulgação
 

Que não se peça a tal trama alguma leveza. A sordidez espreita cada passo de nosso herói. E o espreita também a consciência, que irrompe na voz off da finada mulher, sempre o lembrando que as tramas em que se envolve dizem respeito a um destino.

As imagens a desmentem. Franz parece dotado de uma ingenuidade quase infinita. Um traço a discutir, quando se trata de refugiados (sobreviventes), sobretudo de um que, no passado, se dedicou a atividades nada inocentes, como o tráfico de pessoas. É essa ingenuidade que determinará a mudança brusca da trama. Então, o destino com “D” maiúsculo parece intervir na trajetória de Franz.

É uma intervenção que não deixa de ser inquietante. Nos tempos de Döblin, a crise de 1929, a depressão e o nazismo irrompiam.

No filme, de 2020, uma horrível e interminável pandemia, a crise econômica que dela decorre, sem falar da distribuição perversa de riqueza que o neoliberalismo proporciona parecem ligados menos ao destino de Franz do que à ascensão dos autoritarismos mais perversos. “Berlin” nos lembra desses perigos já disseminados em nossas sociedades e no nosso modo de pensar. Não é um mérito menor.


Serviço:


BERLIN ALEXANDERPLATZ


Avaliação Muito bom

Quando: Estreia nesta quinta (18)

Classificação: 16 anos

Elenco: Welket Bungué, Albrecht Schuch, Jella Haase

Produção: Alemanha, 2020

Direção: Burhan Qurbani

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