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Caderno B

DEUS AINDA É BRASILEIRO, APESAR DE TUDO

Cacá Diegues diz que novo filme é comédia cívica e reflete sobre o Brasil quase 20 anos após ‘Deus é Brasileiro’

Por CARLOS NEALDO - EDITOR DE ECONOMIA | Edição do dia 26/03/2022 - Matéria atualizada em 26/03/2022 às 05h00

 

RIO DE JANEIRO, RJ, 26,06,2014: Retrato do do cineasta Carlos Diegues, no Centro do Rio de Janeiro. Caca Diegues está lançando sua autobiografia. (Foto: Daniel Marenco/Folhapress)
RIO DE JANEIRO, RJ, 26,06,2014: Retrato do do cineasta Carlos Diegues, no Centro do Rio de Janeiro. Caca Diegues está lançando sua autobiografia. (Foto: Daniel Marenco/Folhapress) - Foto: Daniel Marenco/Folhapress
  Em 2003, quando lançou Deus é Brasileiro, seu 16º longa-metragem, o cineasta alagoano Carlos Diegues retratou um Brasil feliz. Éramos a quinta maior economia do mundo e ainda nos orgulhávamos de ser o País do Futebol. Nem passava pela cabeça do mais pessimista dos brasileiros que seríamos derrotados pela Alemanha numa Copa do Mundo — disputada em casa — por um placar tão elástico. Tanta felicidade fez com que Deus escolhesse o País para encontrar um substituto. Afinal, ele queria tirar férias, e desejava que um brasileiro ocupasse seu lugar.


O tempo passou, as coisas mudaram, o cineasta tocou outros projetos — entre eles O Grande Circo Místico, seu último filme, baseado em um poema do também alagoano Jorge de Lima — e Deus parece ter dado um tempo nas questões brazucas. Até que, quase vinte anos depois, Diegues olhou para trás e decidiu se reencontrar com o Todo Poderoso. Surgiu a ideia de fazer uma continuação de Deus é Brasileiro, que ele prefere chamar de Spin-Off, termo utilizado para designar aquilo que foi derivado de algo, sem necessariamente ser uma continuação dele. “Não sei explicar direito porque quero fazer o filme”, diz o cineasta, prestes a fazer 82 anos, sobre Deus Ainda é Brasileiro, seu novo projeto.


O filme, que está em fase de pré-produção e deverá ser rodado em Alagoas a partir de outubro, tentará mostrar o que aconteceu com a civilização brasileira nas últimas duas décadas. A ideia para o longa surgiu durante a pandemia de Covid-19. Nesse período, o cineasta trabalhou o roteiro, que está no quarto tratamento — jargão utilizado no cinema para designar uma nova versão, no caso, a quarta. “Terminei o roteiro em plena pandemia, mas não tinha como filmar, porque poderia matar toda a minha equipe”, explica.


Para contar a história de Deus Ainda é Brasileiro, Carlos Diegues convidou o amigo de infância e escritor alagoano Carlito Lima, que assina o filme como co-roteirista. “Ele foi muito útil porque me ajudou muito no roteiro, me deu muitas ideias de personagens”, diz sobre o amigo, que flagrou o primeiro beijo da vida do cineasta, dado numa moça que ele não lembra o nome, no coreto da Avenida da Paz. “Até hoje o Carlito me sacaneia com essa história”, brinca.


Nesta entrevista, concedida na quinta-feira (23), no Teatro Deodoro, antes do cineasta ser homenageado com o lançamento do livro ‘O Imaginário de Cacá Diegues na Construção de uma Estética Alagoana’, de Edson Bezerra e Luiz Fernando Guimarães, ele fala do que mudou nesses últimos vinte anos, como Deus enxerga o futuro do País e o porquê de Deus ainda insistir em ser brasileiro:


Gazeta. Quase 20 anos depois, você revisita Deus é Brasileiro, num período completamente diferente do que era o País em 2003, quando o filme foi lançado. Qual o motivo de fazer esse retorno à obra?


Cacá Diegues. Não sei explicar direito porque quero fazer o filme. Para mim, é muito difícil explicar. Mas eu posso dizer o que o filme é. Vinte anos antes, Deus visitou um País que tinha a quinta maior economia do Ocidente, era pentacampeão mundial de futebol, e as pessoas estavam felizes. De repente, ficou todo mundo triste, desempregado, sem dinheiro. Depois que o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha [em partida válida pelas semifinais da Copa do Mundo de 2014], o que houve? Então, vinte anos depois, Deus vem ver o que aconteceu. Essa é a ideia do filme. Na verdade, costumo dizer que o filme é uma comédia cívica. Não se trata de uma continuação de Deus é Brasileiro, mas de um Spin-Off. É um filme saído daqueles personagens, daquelas situações, mas que não é uma continuação.


Por quê?


Porque é um filme que fala da situação que o Brasil vive hoje, do que vai acontecer e do que pode acontecer.


Em Deus é Brasileiro, Taoca, o personagem de Wagner Moura, era uma espécie de anti-herói picaresco, como o Lazarillo de Tormes, Dom Quixote e, trazendo para o cenário nacional, o João Grilo de Ariano Suassuna. Taoca sobreviveria nesse Brasil atual?


Não. Tanto que ele não está no filme. O filme começa justamente com o funeral dele. Acho que Taoca é um personagem daquele tempo, de vinte anos atrás. Hoje em dia, o Taoca não cabe mais porque a gente não pode mais brincar com o que está acontecendo. O Brasil está sendo destruído, não é verdade? E o Taoca é um personagem que serve para um momento de alegria, de entusiasmo, embora esse filme não seja um filme triste. Ele traz uma perspectiva de esperança na civilização brasileira. Na verdade, Deus, quando volta para o Brasil, está em dúvida se vale a pena insistir na civilização humana. E ele chega à conclusão de que vale a pena sim, justamente por causa do Brasil. Então, trata-se de um filme positivo, cheio de esperança. Mas não é um filme para o Taoca.


A ingenuidade dele não tem espaço no cenário atual?


Hoje não dá mais. Infelizmente, hoje não dá mais.


No filme de 2003, Deus estava cansado da humanidade, daí a necessidade de tirar férias. Deus suportaria a humanidade atual, com tantos haters tendo poder de fala graças às redes sociais?


Essa é uma questão que o filme trata. Claro que hoje Deus tem dificuldade de conviver com a civilização humana. Até pra Deus está difícil. Mas, de qualquer maneira, esse é um dos temas do filme: será que ele aguenta? Eu acho que ele vai aguentar, porque vai tentar resolver o problema. Quer dizer, não é tentar resolver o problema, porque ele sabe que não conseguirá, mas ele vai perceber que criou uma humanidade que é feita à sua imagem e semelhança e ele tem certa instabilidade com o personagem.


E por que Deus ainda não desistiu do Brasil?


Deus não desistiu do Brasil porque eu ainda não desisti. No fundo [o filme] é o meu interesse pelo Brasil, minha vontade de que o País dê certo.


Você diz que Deus Ainda é Brasileiro não é uma continuação, mas um Spin-Off. Entretanto, esta é a primeira vez que você revisita uma obra sua. Por que escolheu exatamente Deus é Brasileiro?


Não sei te dizer. Hoje você não sabe como um filme nasce. São tantas ideias que surgem que você acaba escolhendo uma. Por que você escolheu exatamente essa? Não sei.


Você convidou o escritor alagoano Carlito Lima para escrever o roteiro de Deus Ainda é Brasileiro com você. Como surgiu essa parceria?


Carlito é meu amigo de infância. Vivemos nossa infância juntos, na Avenida da Paz. A gente jogava futebol na praia. Outro dia me lembrei que passei com ele pelo Coreto [da Avenida da Paz] e me lembrei que o primeiro beijo que eu dei na minha vida foi ali. Não me lembro mais em quem foi, não sei o nome da moça, mas o Carlito até hoje me sacaneia com essa história. Ele foi muito útil porque me ajudou muito no roteiro, me deu muitas ideias de personagens. Deus Ainda é Brasileiro é um desses filmes de viagem, na verdade, porque o filme não para em um determinado lugar. Deus passa por vários lugares. E nesses vários lugares se fala de várias coisas. Cada lugar que ele passa é um problema diferente. Em um tem uma pessoa que está triste, abandonada; noutro tem um revolucionário; noutro tem um inconformista. Então essa viagem é que faz a ideia do filme.


Deus acredita em terraplanismo?


Não (risos). Ainda não. Deus é um pouco mais malandro e mais esperto do que isso.

Durante o período mais crítico da pandemia, em 2020, Cacá Diegues usou os dias de isolamento para retocar o roteiro de Deus Ainda é Brasileiro e escrever crônicas.


Para as duas atividades, uma necessidade: olhar com ainda mais atenção para o Brasil atual.


E é sobre este Brasil que Cacá continua a falar - não antes de evidenciar a relação que mantém com Alagoas, cujas características, presentes em sua obra, seguem inspirando e provocando o cineasta.


Talvez você seja hoje o maior representante vivo da cultura alagoana no Brasil e no mundo. Alagoas está muito presente nos seus filmes, seja nos temas ou nas locações. Isso vem desde Ganga Zumba, passado por Joanna Francesa e se estendendo até O Grande Circo Místico, seu último trabalho, baseado no poema do alagoano Jorge de Lima. Como é essa relação com Alagoas?


É muito profunda. Eu não sei explicar direito, porque eu saí daqui com seis anos de idade. Fui com meu pai, que ia trabalhar no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, meus pais odiavam o Rio, achavam a cidade horrível, então todo verão nós voltávamos para Maceió. Chegava antes do Natal e só voltava para o Rio depois do carnaval. Então, passei minha infância e adolescência toda ainda em Maceió. O Rio era o lugar do trabalho, e Maceió o lugar do prazer, da diversão e da cultura. Isso é indispensável na minha vida. Tudo o que eu sei de cultura, de prazer de viver, eu conheci em Maceió. Eu dei sorte, porque minha mulher [a produtora Renata Almeida Magalhães] adora Maceió. Eu brinco dizendo que ela gosta mais da cidade do que eu. Então eu volto pelo menos uma vez por ano a Maceió. Posso te dizer que não tenho mais nada a ver com a cidade, mas, ao mesmo tempo, tenho. Porque também aconteceu o seguinte: a casa dos meus pais no Rio era uma espécie de embaixada de Alagoas. Todos os alagoanos que iam para o Rio de Janeiro passavam por lá, ou para almoçar ou até para se hospedar. Eu posso dizer que minha vida sempre esteve cercada de Alagoas, sobretudo pela cultura alagoana.


Qual é a relação da sua obra com a política?


Eu já disse isso e vou repetir: o artista tem sempre problema com o poder político, porque a política é aquela coisa de acomodação, e a arte não é. Pelo contrário: a arte é a criação de um mundo novo. Na política nem sempre é um mundo novo que você está criando. Política é sempre uma maneira de você arranjar as coisas. Tanto que o político discursa para o público dele, enquanto o artista cria para que o público não goste e reaja de uma maneira que faça ele pensar. Acontece que até hoje, eu nunca tive uma experiência com o poder brasileiro — seja em qualquer governo — que fosse fácil. Tem sempre uma disputa. Mas você sempre encontra um jeito de chegar a um acordo. Com esse governo não, porque ele não quer que a cultura exista. Então você está lutando contra algo que quer acabar com você, e isso é muito difícil. Acho que a diferença básica é essa: enquanto nos outros governos você tinha certa dificuldade, mas acabava encontrando um jeito de contentar as duas partes, esse não tem jeito. Estamos vivendo uma tragédia.


E por que Deus Ainda é Brasileiro?


Porque é o lado otimista do filme. Porque, apesar de tudo, Deus ainda é brasileiro, ou seja, as coisas ainda podem acontecer. Que é o que acontece no filme. O filme não é pessimista. Como falei, trata-se de uma comédia cívica, é algo que você trata com uma certa graça, com certo humor aquilo que é uma tragédia. E é isso o que está acontecendo no Brasil. Mas você pode sair disso. E o filme pretende dar esperança às pessoas, para elas saberem que podem sair disso. Uma das hipóteses de Deus estar no Brasil e não na Inglaterra ou em outro planeta, por exemplo, é que ele está de saco cheio da civilização humana, ele acha que errou. De repente ele descobre que não errou, e quem dá essa pista a ele é o Brasil, que tem um potencial bacana para a criação de uma civilização muito mais humana, muito mais criativa. Não sei se isso vai acontecer, porque depende muito da política, dessa coisa toda que não sei como vai ficar.

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