ENTREVISTA
Ancestral e futurista: Juliana Linhares mistura referências para recontar o Nordeste
Cantora potiguar é atração do bloco Rasgando o Couro Rock Maracatu, que ganha as ruas de Maceió neste domingo (23), a partir das 12h


Observar o mundo ao redor, principalmente após deixar Natal, no Rio Grande do Norte, e se instalar no Rio de Janeiro há 15 anos, rendeu a Juliana Linhares um outro jeito de ver a própria casa. No olhar do outro, treinou o seu. Do choque entre o que sentia e o que viam dela — naquela outra realidade brasileira — nasceu uma inquietação que virou música. O álbum Nordeste Ficção (2021) foi sua resposta e acabou se tornando sua marca registrada: um trabalho que rompe com leituras reducionistas e celebra a tapeçaria sonora da região, fugindo dos símbolos fáceis e ampliando as margens do que se entende por nordestino.
Juliana desembarca em Maceió para sua estreia no Bloco Rasgando o Couro Rock Maracatu, que arrasta multidões pelas orlas de Pajuçara e Ponta Verde. O desfile, neste domingo, 23, leva às ruas o tema “Transborda em meu maracatu”, um chamado à preservação das águas do São Francisco. Ao lado da anfitriã Fernanda Guimarães, do ícone do reggae Luiz de Assis e do mestre da cultura popular Jurandir Bozo, a potiguar se junta a mais de 50 batuqueiros para transformar a rua em palco e manifesto. A concentração começa ao meio-dia.

Em entrevista à Gazeta, Juliana falou sobre sua relação com o carnaval e com a música. Entre referências como Elba Ramalho, Zé Ramalho e Khrystal, ela compartilha a busca por um som que, sem negar a tradição, respire o presente e dialogue com o futuro.
GAZETA. Você nasceu em Natal e se mudou para o Rio de Janeiro em 2010. Como essa transição influenciou sua percepção sobre ser nordestina e como isso se reflete na sua música?
JULIANA LINHARES. Quando eu me mudei pro Rio, percebi que eu era nordestina, nesse lugar do que é o nordestino pelo olhar do outro. Quando a gente é nordestino, no Nordeste, ainda mais há 15 anos, todo mundo é, então você não fica nessa de falar sobre isso. Quando você sai, abre a boca, se coloca em um lugar onde você é o nordestino, faz muita diferença. Eu acho que essa percepção do que ser nordestino carregava, principalmente aos olhos do Sudeste, fez com que eu começasse reflexões profundas que foram desembocar na minha música e no Nordeste Ficção.
Quais artistas e referências culturais do Nordeste mais impactaram sua formação?
Eu sempre tive influências fortes de pessoas da minha cidade. Eu vou citar a Khrystal, que é uma das que me influenciou muito. Ela sempre teve um trabalho autoral e uma pesquisa da nossa ancestralidade, da nossa música. É uma das pessoas que mais me influenciou. E eu tive muitas referências, desde o pessoal do Ceará até O Grande Encontro. Zé Ramalho foi uma grande referência na minha casa. Mas a gente ouvia muito também o Freddie Mercury, Raul Seixas, Elba, Alceu.
No “Nordeste Ficção”, você busca questionar estereótipos associados ao Nordeste. Quais são os principais estigmas que você procura desconstruir através da sua música?
Acho que o que eu mais queria com o Nordeste ficção era abrir espaços de discussão, janelas. Em todos os encontros possíveis, nos shows, em todas as possibilidades que eu tinha, eu queria abrir janelas para a gente olhar para o Nordeste de um jeito diferente. Eu não queria salvar nada, transformar nada, reinventar nada. Era abrir esses espaços de ver um Nordeste mais plural. Eu acho que nós, às vezes, olhamos de forma generalizada, estereotipada e superficial. Acho que o que eu mais queria desconstruir era esse jeito de olhar para o Nordeste, que é de colocar tudo num mesmo saco, simplificar uma coisa que é muito, muito, muito ampla.
Mas você equilibra a valorização das tradições com a introdução de elementos contemporâneos no seu trabalho. Como vê isso?
A gente nunca olha adiante sem estar sendo sustentado, sem uma base muito firme. E acho que o Brasil tem uma coisa ancestral, uma ancestralidade musical muito rica e profunda, que é o que sustenta tudo que vem sendo criado nesse futuro ancestral. Então, acho que não tem como não dialogar com as novas tecnologias, que transformaram a forma como a gente faz música, que mudaram a forma como a gente pensa música. Acho que o caminho é usar o que temos de tecnologia, mas estar sempre pesquisando, partir de um lugar que é rico, que é a nossa tradição, não só a nordestina, mas do Brasil inteiro.

Você se apresentará pela primeira vez no Bloco Rasgando o Couro Rock Maracatu, ao lado de Fernanda Guimarães. Qual é a expectativa e como você vê movimentos como esse?
Eu tô muito feliz por estar no bloco. Eu estive com Fernanda no Festival Carambola, foi uma troca muito legal. A presença dela foi festiva, firme, incrível mesmo. Acho que celebrar o encontro de mulheres do Nordeste, ainda mais entre Rio Grande do Norte e Alagoas, estados tão especiais e que raramente se encontram, é muito animador. Acho que será grande, rua, aberto, a expectativa está lá no alto.
E o que o público pode esperar?
Festa. Vamos fazer música carnavalesca, mas com espaço para a música autoral que a gente faz. Pode esperar folia, festa, animação.
Você tem uma relação pessoal e profissional com o carnaval? Como essa festividade influencia sua música e performances?
Eu adoro o carnaval. Desde criança. Eu brincava na praia, no Rio Grande do Norte. E lá era melar o povo, eu passava os dias todos completamente coberta de maisena, água e ovo, meu carnaval era o da brincadeira. Aí, depois, veio o carnaval da música. Hoje, eu tenho uma relação muito forte com o carnaval de rua. Eu morei muito tempo no Rio, mas também vou no carnaval de Pernambuco e de outros estados. Fiquei muito tempo, com a Banda Pietá, no Rio de Janeiro, em aparições carnavalescas gratuitas. Então, eu tenho uma relação muito grande com a festa democrática, com a alegria das ruas. É algo que salva muito, que é saúde em muitos aspectos. Colocar minha voz nesses espaços é muito importante pra mim.
Para os que estão tendo, só agora, o primeiro contato com o seu trabalho: quem é Juliana Linhares e qual música você indica ouvir primeiro?
Olha, Juliana Linhares é uma cantora de Natal, Rio Grande do Norte, com uma vivência de Rio de Janeiro e que hoje mora em São Paulo. Que, nos últimos dois anos, circulou bastante por aí, com um trabalho autoral de muita força, em muitos palcos brasileiros e fora do Brasil. Acho que eu indicaria ouvir Balanceiro e Bombinha, que tão lá no Spotify e em todas as plataformas. Mas também deixo a dica aí para ouvir Nordeste Ficção inteiro.
Qual é seu grande sonho hoje, aquilo que enxerga como missão?
Eu quero sempre fazer com que a minha voz some, diga algo que possa ser relevante, que possa ajudar, amparar, conduzir e abrir consciências. Eu sonho em permanecer nesse espaço e que ele se fortaleça e se amplie, que a nossa conexão seja cada vez melhor, mais ampla e mais potente.
O que você gostaria de dizer para os jovens artistas nordestinos que buscam espaço no cenário artístico brasileiro?
Eu acho que, para qualquer artista, é preciso realmente acreditar na verdade da gente, sabe? É mergulhar fundo na gente e saber de verdade o que faz a gente feliz com a nossa arte, pra gente não se permitir influenciar tanto pelo mercado. O diálogo com o mercado é muito importante, mas eu diria para as pessoas estarem sempre dialogando, aprendendo, falando com outras pessoas. Porém, o mais importante é se respeitar e respeitar a sua essência e o que você acredita.
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