‘Alice’ pelo mundo
Curta alagoano vence o Festival Hot Docs e está qualificado a disputar o Oscar
Dirigido por Gabriel Novis, filme conta a história de uma multiartista trans de Alagoas e sua relação com o surfe


É da beira-mar de Alagoas que ecoa a mais recente vitória do cinema brasileiro no circuito internacional. O curta-metragem Alice, dirigido por Gabriel Novis, venceu na última sexta-feira (2) o prêmio de Melhor Documentário Internacional de Curta-Metragem no Festival Hot Docs, no Canadá. Trata-se de uma das maiores vitrines mundiais para documentários. Além de consagra o talento do jovem cineasta, a conquista também qualifica o filme para disputar uma vaga no Oscar.
Novis retornou à terra natal para reencontrar Alice, amiga de infância e multiartista trans alagoana. O reencontro deu origem à obra, um retrato íntimo e sensível, em que a protagonista narra sua jornada de retorno ao surfe — prática que compartilhou com o pai falecido — como forma de elaborar o luto e reconectar-se com suas raízes. O filme mistura mar, memória e denúncia, ao colocar em foco a transfobia, a misoginia e a elitização no universo do surfe.
“Quando eu era criança, achava que eu não tinha sotaque. Achava que era coisa de quem era de São Paulo, do Rio de Janeiro. Mas eu não, achava que Maceió era um limbo, que não acontecia muita coisa na cidade. Mas então eu descobri Djavan e que ele é de Maceió, Hermeto Pascoal também de Alagoas, né, olho d’água das flores. Foi quando me dei conta que pertencia a um lugar real, que ocupa um espaço e que ressoa por outros cantos”, diz Alice, em uma das falas mais tocantes do filme.

O documentário vai além do olhar único de Gabriel Novis e das imagens bonitas: constrói um espaço onde a existência trans é digna de afeto, lazer, futuro.
“Esse deslumbre de ver algo mais de perto, de trazer essa identidade, pode possibilitar à pessoa sonhar mais. O cinema é um lugar de espetáculo onde todo mundo se senta em frente a um telão e tudo que passa por ali, por mais ordinário que seja, ganha um destaque, um sentimento a mais. Acredito que ao me verem surfando, fazendo colagens, música, se divertindo com es amigues, podem vislumbrar algo que pra nós trans é muitas vezes tirado, que é uma vida; com hobbies, lazer, profissão... enfim tudo que nós temos direito, já nascemos com esses direitos. O Brasil é o país que mais mata trans no mundo, e essa violência não é só direta, fisicamente com o assassinato, mas também implícita, oculta, disciplinar, através do medo. Acho que esse filme mostra de maneira sútil que apesar disso continuamos vivendo, que não pertencemos a um limbo”, explica a multiartista.
Para o júri do Hot Docs, a força do filme está na potência da sutileza: “Pela maneira sensível, matizada e brilhante com que a cinematografia e o roteiro nos levam à experiência da protagonista e nos transportam para uma realidade que é, ao mesmo tempo, cheia de bondade e beleza, mas também extremamente perigosa e ameaçadora para as pessoas trans em todos os lugares, o júri concede o prêmio Hot Docs de Melhor Documentário Internacional de Curta-Metragem a Gabriel Novis por Alice”, diz o texto do júri do festival.

O diretor conta que a ideia do filme nasceu de uma conversa casual com a amiga.
“Cresci no mesmo prédio que a Alice e o pai dela, em Maceió, Alagoas. Nossos pais eram amigos, e a gente sempre se via por ali. Mais tarde, me mudei para Los Angeles, e ficamos anos sem nos encontrar. Muito tempo depois, nos reconectamos. Sempre fui fascinado por moda, estilo, criatividade e arte — e foi impossível não me encantar pela Alice. Não só pelo talento, mas pela pessoa autêntica e intensamente criativa que ela é. Alice é uma das skatistas mais estilosas da cidade, uma verdadeira multiartista. Durante uma dessas conversas, perguntei se ela ainda surfava. Eu lembrava com carinho de ver ela e o pai pegando onda juntos — era algo que faziam com paixão. Quando ela me contou que havia parado, aquilo me tocou profundamente”, relembra Novis.
“Foi nesse momento que nasceu a ideia do documentário. Tenho um fascínio especial por contar histórias ligadas ao surfe e explorar diferentes perspectivas dentro do esporte. Não queríamos apenas mostrar esse lado único da Alice — como artista, skatista e criadora — mas também criar, através do filme, uma oportunidade de levá-la de volta ao mar. Um retorno simbólico às origens, à relação com o pai, e a algo que sempre fez parte de quem ela é. Sou apaixonado por histórias de pessoas que fazem diferente, que se superam e que brigam pela sua individualidade — pela sua verdade. E, para mim, a Alice representa exatamente isso. Espero que esse filme inspire outras pessoas, especialmente aquelas que fazem parte de grupos minorizados, a ocuparem seu espaço — no esporte, na arte, na vida. Todo mundo tem o direito de ser quem é, e de fazer o que ama. Ninguém pode tirar isso de ninguém”, afirma o diretor.

O curta é coproduzido pela Los Films e pela premiada MyMama Entertainment, produtora com passagem por Cannes, Sundance, Berlinale e outros festivais de prestígio. A MyMama é conhecida por obras como Medusa, Vitória (com Fernanda Montenegro) e Amarela, indicado à Palma de Ouro em Cannes.
Depois do Hot Docs, Alice segue para o 40º Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, entre os dias 6 e 14 de junho.