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sábado, 17/05/2025 | Ano | Nº 5969
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Espetáculo que imagina autópsia do cérebro de Lima Barreto chega a Maceió

Monólogo reconstrói pensamento do autor e convoca o público a refletir sobre raça, história, racismo e memória

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Imagem ilustrativa da imagem Espetáculo que imagina autópsia do cérebro de Lima Barreto chega a Maceió
| Foto: Kaian Alves

Num tempo em que o discurso científico servia à exclusão e a literatura era privilégio dos salões brancos, um homem negro escrevia com ímpeto, lucidez e coragem. Afonso Henriques de Lima Barreto incomodou a República, foi rejeitado três vezes pela Academia Brasileira de Letras e morreu cercado de delírios e papéis. Mais de um século depois, sua cabeça, simbolicamente, reaparece. É disso que trata “Traga-me a cabeça de Lima Barreto!”, monólogo protagonizado por Hilton Cobra, que será apresentado neste sábado (17), no Theatro Homerinho, em Maceió, às 20h.

Em cena, não há homenagens biográficas nem discursos laudatórios. O espetáculo, escrito por Luiz Marfuz e dirigido por Onisajé (Fernanda Júlia), parte de uma fábula violenta, na qual Lima Barreto tem o cérebro exumado por eugenistas, com o objetivo de explicar o inexplicável para a lógica racista da época: como um homem negro, pobre e mentalmente instável pôde escrever literatura de alto nível? A sessão é, ao mesmo tempo, tribunal e laboratório. O corpo é o Brasil.

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| Foto: Adeloya Magnoni

A montagem existe desde 2017, criada para celebrar os 40 anos de carreira de Hilton Cobra. Já passou por 140 cidades em 19 estados, atingindo mais de 35 mil espectadores. Em 2025, com esta nova turnê, o espetáculo se tornará um dos poucos a ter circulado por todos os 27 estados do País. Um feito simbólico, à altura do que se propõe, que é devolver Lima Barreto à cena nacional.

Além de interpretar brilhantemente o personagem, Hilton Cobra ergue um corpo ancestral e irônico, que evoca o Lima marginalizado pela história oficial. A ideia é fazer dançar os espectros e satirizar, sem titubear, os mitos de um país estranho, mas que existe no passado e, infelizmente, no presente.

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| Foto: Divulgação

O monólogo teatral se ancora em escritos autobiográficos e contundentes de Lima Barreto, especialmente “Diários íntimos” e “Cemitério dos Vivos”. Durante a encenação, são apresentados trechos de textos de figuras como Monteiro Lobato, Nina Rodrigues e Renato Kehl — sujeitos que defenderam, de forma direta, a inferioridade biológica do povo negro. Essas vozes ecoam no palco, mas são confrontadas pelo humor ferino e pela inteligência cortante do protagonista. Ao responder às perguntas do inquérito eugenista, Lima Barreto desfaz, com ironia e dor, premissas supostamente intelectuais e científicas, criadas para excluir.

A peça se divide em quatro movimentos, que conduzem o público por diferentes camadas da mente e da vida do escritor. Cada um desses espaços revela fragmentos da sua subjetividade, crises no hospício, a solidão diante da recusa social, os diálogos imaginários com seus algozes e o confronto direto com a elite. É um mergulho que não poupa o público.

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| Foto: Divulgação

Produzido pela Cia dos Comuns — coletivo fundado por Hilton Cobra em 2001, com o objetivo de ampliar a presença negra nas artes cênicas —, o espetáculo exibe uma dramaturgia visual e sonora potente. O cenário é assinado por Marcio Meirelles; o figurino é de Biza Vianna e a trilha de Jarbas Bittencourt. Há ainda vídeos de David Aynan, trechos dos filmes Homo Sapiens 1900 e Arquitetura da Destruição (cedidos por Peter Cohen) e vozes em off de artistas como Lázaro Ramos, Frank Menezes e Caco Monteiro.

PRÊMIO FUNARTE MYRIAM MUNIZ

A circulação da obra é viabilizada pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz/2024, e os ingressos estão disponíveis a preços populares. A política de acesso, aliás, não é apenas uma estratégia de difusão, pois dialoga diretamente com o espírito da peça, que desmonta os filtros elitistas da cultura e reivindica um lugar para o povo no centro da criação e da reflexão artística.

Em Maceió, o espetáculo fará uma única apresentação, no Theatro Homerinho, e ganha ainda mais potência ao encontrar uma cidade marcada por contrastes raciais e históricos profundos.

LIMA BARRETO

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| Foto: Reprodução

Lima Barreto foi, além de um romancista genial, um corpo insurgente, um herege entre os intelectuais. Um dos escritores mais agudos e inquietos da literatura brasileira, ele nasceu em 1881, no Rio de Janeiro, filho de ex-escravizados. Atravessou a Primeira República com uma escrita que destoava da norma: seca, direta, politizada. Seus romances, como Triste Fim de Policarpo Quaresma e Clara dos Anjos, desmontaram o mito da brasilidade cordial ao expor o racismo estrutural, o burocratismo paralisante e a hipocrisia das elites. Ignorado em vida pelos círculos letrados que preferiam a estética branda do Parnasianismo, foi internado diversas vezes por alcoolismo e morreu em 1922, aos 41 anos. Sua obra, no entanto, resistiu ao apagamento.

Em uma das cenas finais, após o diagnóstico grotesco de que sua genialidade só pode ser explicada por uma suposta “porcentagem branca” no sangue, a cabeça do escritor explode no palco. Com ela, espalham-se suas palavras, contos, ensaios, personagens e memórias por todo o espaço. É o delírio da insubordinação. É a metáfora da epistemologia negra que invade, com beleza e poder, os salões onde antes se discutia a “pureza”.

Serviço:

O espetáculo “Traga-me a cabeça de Lima Barreto!”, com Hilton Cobra, será apresentado neste sábado (17), às 20h, no Theatro Homerinho, no bairro de Jaraguá. Os ingressos são a preços populares, de R$ 10 a R$ 30, e podem ser adquiridos no Viva Alagoas e na plataforma Ingresso Digital.

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