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CAOS POÉTICO

Galeria Karandash, um dos principais acervos da arte alagoana, completa 40 anos

Mestres populares que hoje são cobiçados nos grandes centros tiveram a aposta de Dalton Costa e Maria Amélia Vieira como primeiro passo

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Imagem ilustrativa da imagem Galeria Karandash, um dos principais acervos da arte alagoana, completa 40 anos
| Foto: Carlos Davi/Harper‘s Bazaar

Quem atravessa apressado a Ladeira dos Martírios, quase no coração de Maceió, pode não perceber que criaturas de barro e carrancas de madeira espreitam o caminho. Ali, no casarão de número 89, resiste um templo de arte popular e contemporânea que guarda peças de alguns dos principais artistas visuais de Alagoas. Na Galeria Karandash, histórias se amontoam em forma de obras de arte, num labirinto sedutor que Maria Amélia Vieira e Dalton Costa, guardiões do acervo, descrevem como caos poético.

É memória em forma de acervo. Testemunho em forma de curadoria. Escola informal de olhares. A Karandash chega aos 40 anos como uma espécie de portal. Quem se aventura em suas cores e texturas atravessa o Sertão, o interior mais longínquo e encantado, as Alagoas e os Brasis explorados por Maria Amélia e Dalton Costa. Em 1985, o espaço surgia como galeria de arte contemporânea, mas logo cedeu terreno à arte popular que o casal colecionava desde a juventude.

“Eu, como artista, e meu marido, que na época era meu namorado, resolvemos abrir a galeria. Mas a gente já tinha uma pequena coleção de arte popular, porque ele colecionava desde adolescente. Assim como eu também colecionava”, relembra Maria Amélia.

Imagem ilustrativa da imagem Galeria Karandash, um dos principais acervos da arte alagoana, completa 40 anos
| Foto: Carlos Davi/Harper‘s Bazaar

O nome Karandash, que significa “lápis” em russo, surgiu de uma brincadeira entre amigos, com sugestão do arquiteto Ricardo Maia. A princípio soou exótico, mas virou identidade. “Depois de muitos anos, a gente achou estranho e queríamos mudar, mas aí todo mundo já estava acostumado. Hoje em dia eu gosto muito, acho interessante”, diz a fundadora.

O empreendimento veio da rebeldia. O impulso persistente de dar outra cara ao que era considerado arte na Maceió de quatro décadas atrás. “A gente queria romper com algumas coisas que a gente achava que eram antigas, vamos dizer assim, entre aspas, velhas, que a gente queria dar uma roupagem nova, trazer uma arte abstrata, conceitual, uma arte bem atualizada, diferente daquela arte romântica e daquela arte acadêmica que existia na época”.

A mudança de rota na curadoria foi impulsionada por uma mentora decisiva: a arquiteta Janete Costa, que aconselhou o casal a reunir, em um mesmo espaço, a arte espontânea dos mestres populares e a produção autoral de Maria e Dalton, que acabaram se revelando dois dos mais interessantes artistas contemporâneos do estado. Foi essa dobradinha estética e afetiva que transformou a Karandash em uma das galeria de arte popular mais longevas do Nordeste, com um acervo que hoje ultrapassa as duas mil peças.

Obra de Dalton Costa
Obra de Dalton Costa | Foto: Felipe Brasil

Nas estantes, paredes e vitrines improvisadas, convivem mestres consagrados como Véio, Irinéia, Antônio de Dedé, Jasson, Manoel da Marinheira, Resendio e Fernando Rodrigues. Muitos deles revelados pelo casal, nas longas viagens aos interiores de Alagoas e estados vizinhos. “Viajávamos de carro para o Sertão, nos fins de semana, em busca de artistas. Parávamos nas estradas, nas praças e perguntávamos às pessoas se conheciam alguém que fazia bonecos de madeira ou algo assim”, contou Dalton em uma recente entrevista à revista Harper‘s Bazaar.

Essa busca se converteu num dos diferenciais da Karandash: ser testemunha e promotora das trajetórias artísticas desde o início. “Muitos deles têm aqui na Karandash suas primeiras obras, de quando nem imaginavam chegar onde estão. Gostamos de fazer esse acompanhamento. Se encontramos um artista com um diferencial, vamos lá e compramos a peça, além de oferecer o nosso serviço de assessoria”, explica Maria Amélia.

Ela conta, em tom de desabafo, que manter uma galeria em Maceió, longe dos grandes mercados de arte, é desafio diário. “A galeria tem quase 40 anos de trabalho e de existência. Isso é uma resistência, eu diria, não existência. Porque ter uma galeria de arte num lugar como Maceió é complicado”.

Imagem ilustrativa da imagem Galeria Karandash, um dos principais acervos da arte alagoana, completa 40 anos
| Foto: Carlos Davi/Harper‘s Bazaar

Mas a resistência vem também da invenção. Um dos braços mais simbólicos da Karandash é o projeto Balanço das Águas, barco-museu que navega o Baixo São Francisco levando parte do acervo da galeria às comunidades ribeirinhas. Um museu flutuante onde a arte reencontra seu lugar de origem e seu público mais genuíno. “Eu costumo dizer que a Karandash é um caos poético. Tem de tudo aqui. De arte contemporânea a artes populares, de doutores a pescadores. Não há distinção. E isso, para mim, fala de Brasil”, diz Maria Amélia.

A galeria também se reinventa com visitas guiadas, especialmente para escolas públicas. “Uma das formas que a gente achou mais importante foi essa questão das visitas guiadas, para que as pessoas comecem a perceber que a arte é simplesmente um reflexo da sociedade, um reflexo dos tempos que vivemos”, comenta.

Nos últimos anos, a Karandash também fincou presença em eventos como ArtRio e se prepara agora para o SP-Arte, uma das maiores feiras de arte da América Latina. “A maioria das pessoas que viram o nosso stand na ArtRio começaram a falar da questão do frescor, da alegria, daquela arte que esquenta o coração das pessoas. É como se a gente falasse pra gente mesmo: estamos no caminho certo”, diz Maria.

Imagem ilustrativa da imagem Galeria Karandash, um dos principais acervos da arte alagoana, completa 40 anos
| Foto: Carlos Davi/Harper‘s Bazaar

Entre os objetos do acervo e as memórias que não cabem em prateleiras, o que a Karandash preserva, afinal, é um modo de olhar. E também de continuar acreditando que a arte popular é tão sofisticada quanto qualquer vanguarda. Que o Brasil profundo pulsa nas mãos de quem talha madeira, molda barro, inventa formas no Sertão, defendem os guardiões da galeria.

O local funciona de terça a sexta-feira, das 8h às 12h e das 14h às 17h, na Ladeira dos Martírios, nº 89, em Maceió. É aberto a todos.

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