‘Uma faca sem cabo nem bainha’
Escritor Thalles Gomes lança 'Ladrões de Cabrito' em Maceió
Romance liga Brasil e Haiti por suas feridas, com espaço para discutir colonialismo moderno e soberania; evento gratuito será nesta quinta-feira (10), às 19h, na Livraria Novo Jardim


O escritor alagoano Thalles Gomes retorna a Maceió nesta quinta-feira (10), às 19h, para lançar o seu novo romance, Ladrões de Cabrito, na Livraria Novo Jardim, localizada no Centro Cultural Arte Pajuçara. A obra, publicada pela Expressão Popular, é uma narrativa ficcional ambientada entre Alagoas e o Haiti, mas construída com os escombros da história recente.
Após estrear oficialmente em São Paulo, em evento com participação do ator Eron Cordeiro, também alagoano, o autor agora apresenta ao público de sua terra natal uma novela que se vale da estrutura do thriller para conduzir o leitor por uma trama de assassinatos, silêncios e sobrevivências. No entanto, o suspense serve aqui mais como artifício do que como destino: o que há, no fundo, é um livro de denúncia, de rastros históricos e de combate. Uma marca do olhar de Thalles Gomes.
A protagonista da história é Judeline, médica haitiana que, após o terremoto de 2010, migra para o Brasil e se estabelece em Alagoas. Em seu cotidiano com a elite local, ela reconhece velhas semelhanças entre os dois países: traumas coloniais não resolvidos, violência disfarçada de ordem, estruturas de exploração com novos rostos e novos nomes. “Na trama, há uma série de mortes na elite de Maceió. A partir disso, Judeline vai desvelando camadas dessa realidade brasileira, que muito se assemelha à haitiana”, explica o autor.

Thalles sabe do que fala. Em 2010, ele integrou uma brigada de solidariedade internacionalista da Via Campesina ao Haiti, pouco depois da tragédia sísmica que agravou a crise humanitária no país caribenho. A experiência o confrontou diretamente com os rastros da missão da ONU liderada pelo Exército brasileiro, a Minustah — um fracasso, diz ele, que reverbera até hoje. “Aquela missão acabou sendo um laboratório para que muitos dos generais brasileiros do Exército pudessem se rearticular, se organizar e aplicar muito do que eles fizeram lá nas missões de pacificação nas favelas do Rio de Janeiro, e depois no governo Bolsonaro. Nós estamos sentindo até agora”, afirmou o autor em entrevista ao Brasil de Fato.
O nome do livro vem de uma expressão usada no Haiti durante os anos da ocupação. “Era muito comum a gente passar por alguma comunidade e ouvir o som de alguém imitando um cabrito, porque era muito recente a experiência de alguns soldados terem roubado cabritos. E o cabrito era muito importante, quase como uma poupança do camponês”, relembra.
Embora ele e seus companheiros não fizessem parte da missão militar, mas sim de um grupo civil solidário, carregavam nos corpos a marca da presença estrangeira, do invasor, do ladrão de cabrito.
O romance, no entanto, não se limita à crítica direta e tampouco cai no didatismo, pelo contrário. O autor recusa estereótipos fáceis sobre o Haiti e se propõe a investigar a genealogia da pobreza imposta. “Foi cobrado um preço muito caro para o Haiti pós-independência. Essas nações se juntaram para fazer com que o Haiti nunca mais pudesse ter uma soberania, uma autonomia”, observa Thalles. O resultado, segundo ele, é um país que ainda hoje sofre com os juros de uma dívida de independência que nunca deveria ter existido.
Judeline, a personagem central, é um fio condutor da trama, a lente pela qual se cruzam duas realidades que parecem distantes, mas são parte de um mesmo continente amputado. Como apontou o sociólogo Lúcio Verçoza em resenha publicada no jornal A Voz do Povo (leia aqui), o livro é “uma faca que só tivesse lâmina — faca só lâmina. É um livro de combate ao punhal verde e amarelo, assim como a tudo o que ele representa”.
Além de Ladrões de Cabrito, Thalles Gomes também é autor do infantil Madá e o jegue cantador, da coletânea de crônicas Dediquem-se à rasteira e do romance Martelo alagoano, em que flertava com o realismo fantástico. Aqui, o tom é outro: a fúria é contida, mas não anestesiada. E o combate, embora em forma de ficção, é claro e direto. Para não dizer, claro, apropriado para estes tempos. Para hoje.
O evento de lançamento, nesta quinta-feira (10), é aberto ao público. O autor participa de um bate-papo, a partir das 19h, na Livraria Novo Jardim, localizada no Centro Cultural Arte Pajuçara (Av. Dr. Antônio Gouveia, 1113 - Pajuçara, Maceió). A obra também pode ser adquirida pelo site da editora Expressão Popular (expressaopopular.com.br).