MAIS DE UM SÉCULO
Santeiros de Penedo mantêm viva tradição que une religiosidade e memória
Francisco e o filho New Francis representam a quinta e sexta gerações de escultores sacros na histórica cidade alagoana


Na madeira repousa o santo. Em silêncio, espera. Então, mãos experientes, movidas por fé e memória, o despertam. É assim que começa o dia de um santeiro: observando o bloco bruto, sentindo o que cabe ali. Em Penedo, às margens do Rio São Francisco, essa cena se repete e resiste por meio de artistas como Antônio Francisco Santos, conhecido como Timaia, mestre santeiro que traz consigo, em cada técnica e no olhar sensível, cinco gerações dedicadas a essa tradição secular.
Natural de São Brás, chegou à cidade histórica aos dez anos, quando o pai decidiu mudar de rumo. “Quando completei dez anos, meu pai se mudou para Penedo e fui estudar no Grupo Escolar Clementino do Monte. Aos quinze, entrei na Escola de Santeiro, com o mestre Antônio Pedro, onde passei três anos e meio aprendendo a arte”, lembra. Foi ali que teve seu primeiro contato com a madeira e com o ofício que moldaria sua vida. “Vi um senhor já de idade tirando formas da madeira, aquilo me impressionou muito. Comecei limpando pedaços de madeira e fazendo algumas talhas. Meu mestre viu meu interesse e me incentivou: ‘Vai, rapaz, continua!’. Minha primeira imagem foi um São Francisco”.

São Francisco, aliás, continua a marcar sua vida e sua produção artística. “Ele foi e ainda é meu herói, o santo que mais esculpi. Sempre tive uma ligação forte com ele. A história dele me emociona: um homem que escolheu viver na simplicidade, sem apego ao dinheiro”.
O aprendizado, naquela época, era exigente. “No começo, o aluno errava, mas tinha que refazer. A técnica quem cria é o aluno, o mestre passa o conhecimento, ensina como bater, mas o aluno descobre seu jeito”. O contato diário com o mestre e a convivência constante eram fundamentais para que a arte se tornasse extensão do corpo. “A arte exige prática constante. Se você não frequenta o ateliê, esquece e perde o ritmo. Para ser um bom escultor, você tem que ter visão, pegar o bloco de madeira e ver a imagem escondida dentro dele”.
NEW FRANCIS

Mesmo afastado da prática por motivos de saúde, Timaia segue transmitindo o que sabe. “A Casa do Penedo me trouxe de volta para continuar a tradição. Meu filho representa a sexta geração de santeiros de Penedo. Eu ensino que o artista tem que estar sempre com peças prontas, porque o cliente não quer esperar”.
O filho citado pelo artesão sacro é New Francis. Se nomes pudessem ser traduzidos, seria algo como “Novo Francisco”. E ele segue mesmo os passos do pai e do Santo. New Francis cresceu entre entalhes e vê na feitura das peças de madeira o seu destino, uma vocação inescapável.
“Acho que foi assim, como eu cresci vendo meu pai fazendo arte, aí eu já segui de destino, né? Já fui fazendo desde pequeno e continuei. Não teve um tempo de escolha, sabe? Foi inevitável”. Com orgulho, fala da herança recebida: “Meu pai me passou a técnica, me ensinou como trabalhar mais rápido, como fazer várias coisas. Hoje tenho orgulho. Ele me ensinou muito sobre a história também. Bem dizer, meu pai me criou como uma enciclopédia, um livro completo”, afirma New.

Agora, é ele quem começa a ensinar. “Tenho dois alunos que convivem comigo e estão aprendendo. A gente não para. Quem quiser aprender, eu tô aí pra ensinar”. A generosidade no ensino remete ao aprendizado em casa e à vida franciscana: “Lá a gente ensina de graça. O que a gente aprendeu de graça, a gente repassa de graça. A escola de santeiro acabou quando o mestre do meu pai faleceu, mas meu pai continuou, e agora eu estou seguindo. Hoje, o ponto lá é uma oficina de arte, uma escola viva”. Carregar o peso simbólico da sexta geração, diz, é motivo de honra. “É uma coisa boa, especial. Eu dependo dessa cultura e tô correndo atrás pra fazer a sétima geração. É um orgulho ser reconhecido como santeiro na minha própria cidade”.
PENEDO DOS SANTEIROS

A tradição que os Franciscos mantêm viva remonta à chegada dos frades franciscanos em Alagoas. Foi a partir da construção do convento, entre os séculos 17 e 18, que os penedenses passaram a ter acesso ao ensino de latim, música, gramática e artes, ministrado pelos religiosos. Os santeiros surgiram desse ambiente: artistas artesãos especializados na criação de imagens sacras por meio do entalhe em madeira. Embora hoje não existam mais moldes formais de uma escola, a transmissão dos saberes permanece viva, feita de pai para filho, de mestre para aprendiz.
Esse trabalho também despertou o interesse da pesquisadora Marta Moura, jornalista e doutoranda, que escolheu o tema como foco de sua tese de doutorado. “Falar sobre os santeiros de Penedo, artesãos que fazem esculturas em madeira, principalmente religiosas, é uma das coisas mais importantes que já fiz. É um trabalho necessário tanto para Alagoas quanto para a Ordem dos Frades Menores”. Segundo ela, o tema estava caindo no esquecimento. “Quando fui aos conventos do Recife e do Rio de Janeiro, os próprios frades ficaram entusiasmados com a minha pesquisa, porque nem eles tinham muito material sobre o assunto”.
Francisco — ou Timaia Santeiro — é reconhecido como mestre pela população. Ao falar sobre o assunto é direto e faz questão de dizer o que realmente faz de alguém um mestre. “Eu não sou um Patrimônio Vivo porque não teve ninguém que dissesse ‘olha, esse cara, tem esse patrimônio vivo aqui’, você sabe qual o valor de um patrimônio vivo, né? Não pode ser patrimônio quem não teve um aluno. Quem não repassa a tradição não é mestre. Eu já tive cinco alunos e sigo repassando”, garante. E completa: se depender dele, Penedo continuará sendo uma escola de santeiros, onde, às margens do Velho Chico, os santos nascem todos os dias.