'Os urubus'
Novo livro de Felipe Benício usa urubus como metáfora que reflete o Brasil recente
Poeta e professor da Ufal vê a poesia como trincheira e meio de resistir aos tempos; obra sai pela editora Trajes Lunares


Entre versos que cortam como aves rasgando os céus, Felipe Benício apresenta Os Urubus (Trajes Lunares), seu novo livro de poemas. Escritor, poeta e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Benício é mestre e doutor em Estudos Literários, com trajetória acadêmica construída na mesma instituição em que hoje leciona. Mas, antes de tudo, como ele mesmo afirma, é um leitor — e é dessa leitura atenta do mundo que nasce Os Urubus, obra atravessada pelo peso de um tempo recente, ainda mal digerido.
“Um subtítulo para este livro poderia ser: (Brasil, 2016-2022)”, diz o autor. Ao longo dos poemas, a imagem do urubu se impõe como metáfora da decomposição nacional, signo da violência que insistimos em naturalizar e da apatia que nos molda diante das barbáries cotidianas, como aves de rapina sobrevoando um país em putrefação.
O lançamento ocorreu no dia 9 deste mês. A obra está à venda no site da editora Trajes Lunares (trajeseditora.com.br) e custa R$ 42. Também é possível encontrar a obra na Livraria Novo Jardim, localizada no Centro Cultural Arte Pajuçara.

Benício retorna à cena literária com poesia afiada, politizada e de uma intensa força estética.
Em versos que expandem a plasticidade da página e desafiam convenções da poesia tradicional, ele busca deliberadamente uma reinvenção estética. Inspirado por autores como Gertrude Stein, Richard Plácido, João Cabral de Melo Neto e Dylan Thomas, afirma: “Em Os Urubus, quis explorar formas de composição e uma proposta estética diferente das que trabalhei no meu primeiro livro. Durante o processo de escrita, eu tinha um objetivo simples: não me repetir”.
Essa inquietação é uma das tensões centrais do ofício da escrita: como transformar uma linguagem cotidiana, simples e funcional, em material poético? Como fazer da palavra, instrumento comum, algo catártico, capaz de desconcertar e afetar? Benício diz encarar a pergunta como desafio permanente, movido pela ética de não se acomodar e pelo desejo de explorar novos caminhos expressivos a cada obra.

Ser escritor no Brasil, destaca ele, envolve questões muito além da estética: “É enfrentar a ausência de políticas públicas eficazes de incentivo, a dificuldade de formar e manter um público leitor e, em contextos regionais como o alagoano, a desvalorização recorrente da produção local”.
Segundo Benício, há uma cultura hegemônica de exaltar o que vem de fora em detrimento da potência criativa que nasce aqui.
“O contraponto a isso são iniciativas feitas por pessoas que decidem colocar arte no mundo à revelia de um sistema que insiste em suprimir, apagar essa força criativa. Temos coletivos de arte e literatura, cineclubes, editoras e livrarias independentes, e toda uma classe de fazedores de cultura que produzem — com muito pouco, diga-se — o que há de mais relevante artisticamente em nosso estado.”
O poeta diz que, nos tempos atuais, parece cada vez mais difícil nomear os urubus. Seu livro não oferece respostas fáceis, nem busca produzir poesia palatável: expõe feridas e impõe perguntas.
“a fila
reticente
estendia-se a não caber
nuas
as pessoas
caminhavam estreitas
até a prancha
de onde saltavam para dentro
da caldeira”
(página 17, “Os urubus”)
*Sob supervisão da editoria de Cultura