POESIA COM FERRO E FOGO
Marta Arruda é reconhecida como Patrimônio Vivo de Alagoas
Marta Arruda recorda os primeiros passos como escultora e reflete sobre a missão de formar novos artistas


Em um canteiro de obras, enquanto trabalhava como soldadora no Gasoduto Nordeste, em meados da década de 1980, Marta Arruda olhou para um pedaço triangular de ferro e viu um raio de sol. A primeira peça da artista alagoana foi batizada de “Novo horizonte”, o que hoje parece um acordo com o destino ou algo do tipo. Afinal, desde aquele dia, o ferro, um material duro, inflexível e associado à indústria e à força bruta, curva-se à poesia da escultora, que acaba de ser reconhecida como Mestra do Patrimônio Vivo de Alagoas.
Nascida no bairro da Levada, em Maceió, Marta Lúcia de Arruda Pereira, hoje com 67 anos, começou seu caminho artístico de forma quase clandestina. Formada no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), foi a primeira mulher soldadora de Alagoas, operando em um ambiente predominantemente masculino. No canteiro de obras, enquanto colegas fabricavam churrasqueiras ou reparavam peças industriais, ela aproveitava sucata e momentos de folga para criar esculturas que, inicialmente, decoravam a própria casa. “Eu não escolhi o aço, ele estava ali presente no meu dia a dia e no meu trabalho. Sabia a hora de dar calor, de dar forma. As formas surgiam espontaneamente. Foi o aço que me escolheu”, conta.

O marco inicial veio quando uma amiga, Lilian Lima, a incentivou a inscrever suas peças no Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco. Entre os jurados estava Ferreira Gullar, que mais tarde lhe diria reconhecer, já naquela época, o futuro de sua obra: “Ele disse que eu tinha conhecimento do material, dois anos depois, que reconheceu uma obra minha em um lugar. Aquilo me deu segurança para seguir fiel ao aço, às chapas”. Desde então, sua trajetória passou a unir a precisão industrial à experimentação estética, criando esculturas em aço corten e aço carbono, quase sempre com polimento e cortes que preservam o vigor do material e acrescentam movimento.
Ao longo de 40 anos, Marta construiu um repertório singular, se recusando a ceder às “modismos” ou ao apelo de materiais mais maleáveis. Sua produção inclui peças de grande porte, obras instaladas em espaços públicos, elementos inspirados no folguedo Guerreiro e no cangaço, além de trabalhos artesanais como espelhos e caixas decoradas com fitas e pedrarias. “A cultura popular, na minha obra, surge espontaneamente. Fiz um guerreiro como um quebra-cabeça, sem planejar. Quando vi, estava pronto”, conta.

Sua atuação não se restringe ao ateliê. Marta ministra oficinas pelo Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul, repassando técnicas e incentivando novos artistas. Ela defende que a transmissão de saberes seja feita de forma aberta e generosa: “Um artista jamais vai copiar o outro. Existe o pensamento coletivo, e é preciso ter respeito e união. Eu aprendi isso convivendo com grandes nomes e passando adiante o que sei, sem medo”.
O reconhecimento como Mestra do Patrimônio Vivo, recebido em 12 de agosto de 2025, veio no mesmo período em que celebra quatro décadas como soldadora e escultora. Para conquistar o título, foi necessário comprovar atuação contínua na cultura popular e reconhecimento comunitário como transmissora de saberes. A partir da diplomação, a artista receberá uma bolsa vitalícia do Fundo de Desenvolvimento de Ações Culturais (FDAC).
“Eu acredito que o título de Patrimônio Vivo é, como todas as coisas, algo que chega em sua hora. Neste ano, eu comemoro 40 anos como soldadora profissional. São 40 anos como escultora, porque as duas coisas sempre andaram juntas, foi um casamento. Ser soldadora, ser escultora, foi sempre lado a lado”, afirma a artista.

“Eu comecei a comemorar esses 40 anos de sacerdócio, de trabalho com o ferro, no ano passado, com uma exposição lá no Espaço Cultural da Caixa, no Rio de Janeiro. Outro grande reconhecimento que me deixou muito feliz. São 40 anos de arte, 40 mestres, tudo combinou. Tá tudo muito lindo, né?”, completa Marta.
Ainda neste ano, Marta planeja realizar em Maceió uma grande exposição comemorativa, aberta ao público, e, se conseguir apoio, quer transformar o espaço em um centro de aprendizado prático de escultura em ferro. “Se eu vou repassar o meu trabalho, tem que ser com a mão na massa. É lixadeira, máquina de solda e força física. Assim aprendi e assim ensino”, diz.
Ao falar sobre Alagoas, a artista se emociona e reforça que pretende repassar seus saberes, não apenas por obrigação, mas com a alegria de quem é apaixonada pelo estado desde o primeiro dia em que se reconheceu alagoana.

“Alagoas é esse celeiro enorme de arte, de gente criativa. Nosso artesanato é rico, nossos folguedos são os melhores do Brasil. Nosso artistas visuais são grandiosos. Mas eu sinto falta, por exemplo, de um espaço para grandes exposições e de oportunidade para as pessoas que estão iniciando”, finaliza a nova mestra.