PREENCHENDO LACUNAS
Adriana Vieira Lomar imagina história perdida de trisavó alforriada em romance premiado
Livro 'Ébano sobre os canaviais' reflete herança maldita da escravidão, com história que se passa em Alagoas


Foram os vazios e as interrogações que levaram Adriana Vieira Lomar a se debruçar sobre o passado. No centro da sua inquietação, a história da trisavó, uma mulher negra alforriada cuja identidade se perdeu na poeira do tempo e das narrativas sob o jugo do colonizador. “O que sabíamos era que meu trisavô, bisavô do meu pai, se apaixonou por uma negra alforriada. E só. Ponto final. Mas qual o nome dela? Quando nasceu? Quando morreu? Ninguém sabia. E, bom, eles tiveram um herdeiro. Até aí não é ficção, é real. Mas sobre ela, nada. Ninguém sabe o nome. É uma lacuna que passou de geração em geração”.
O incômodo cresceu. A escritora avançava em buscas infrutíferas em relação a fatos, mas que a fizeram revisitar os cenários dessa história: cidades de Alagoas. “Fiz uma busca enorme e demorada. Dormi em São Miguel dos Campos, procurei em tudo, não achei absolutamente nada. E essa reflexão de que ela teria vindo da África e, hoje, não sabermos o nome dela, se tornou uma dor para mim. É aquela velha história, e muito assertiva, de que a narrativa pertence sempre ao branco. É sempre o olhar do colonizador que permanece e vai apagando as histórias de pessoas pretas como essa minha trisavó”, reflete.

Filho dessa ausência, Ébano sobre os canaviais, romance vencedor do Prêmio Kindle de Literatura, agora em edição impressa pela José Olympio (selo da Record), percorre dois períodos históricos: o século 19, com o amor entre o imigrante português José e a negra liberta Ébano, e o presente, com Maria Antonieta, mulher branca e racista que nunca se interessou pela própria ancestralidade. Entre elas, uma teia de personagens expõe a herança da escravidão e do patriarcado.
“Pouca coisa mudou, a meu ver. Há muitas mulheres que ainda se submetem. Você pega a Anita [personagem do livro], que era feminista, interessante, até se apaixonar. Ela se apaixona e vira ‘mulherzinha’, nesse sentido de fazer valer o pensamento do homem. Kina [também personagem] é justamente a que simboliza a escravidão, como o senhor de engenho via a escrava, que também servia como escrava sexual. O Brasil foi construído dessa forma. Mulheres foram pegas no laço. E muitos descendentes foram frutos de estupro”, opina a autora.
A escolha do nome da protagonista carrega um duplo sentido. “É a árvore preciosa e a sombra que ela faz sobre esse canavial que ela não herdou”, explica. Para compor a narrativa, Adriana mergulhou na cultura e no folclore de São Miguel dos Campos, cidade alagoana onde se passa parte da trama. “Vi a necessidade de pontuar onde a história se passou. Isso não é comum na minha literatura. Foi uma exceção”, diz Adriana.
Ainda que declare não se considerar negra, Adriana vê o livro como fruto de um incômodo social. “Não é meu lugar de fala, digamos assim. Mas esse livro nasce de um incômodo como cidadã, como alguém que precisava contar essa história, que nasce como algo familiar, mas que é representativo para a sociedade. A gente escreve, não só para o outro, mas para preencher lacunas. Históricas e nossas também”.

Na Bienal Internacional do Livro de Alagoas, que ocorre entre os dias 31 de outubro e 9 de novembro, a autora irá dialogar sobre o apagamento histórico e o racismo estrutural, mas sem oferecer respostas fáceis. “Não me sinto dona da verdade e nem quero mudar a sociedade brasileira. Apesar de eu, pessoalmente, considerar importante que mude. Literatura para consertar não é literatura. É outra coisa. A nossa sociedade precisa se questionar se ela está indo para o caminho certo ou errado, ela tem que se questionar. Mas não serei eu, como autora, que irei ditar o que é certo e virtuoso. O livro serve para questionar. Somente. Ou não. Se a pessoa quiser ler e não se questionar, ela também é livre”, pondera.
A trajetória literária de Adriana começou cedo, ainda na infância, quando era procurada pelos amigos para escrever cartas de amor — e de separação. Publicou contos e um romances curto antes de Ébano sobre os canaviais, mas foi com ele que uniu pesquisa, ficção e memória pessoal. “As ausências vão costurando as histórias. Essas perguntas foram se acumulando”, diz, ao falar que, ao nomear sua personagem e lhe dar voz, também confronta a sombra persistente da escravidão e os fantasmas familiares.
“O Brasil é um país racista, que não se vê como um país racista. Acredito que precisamos conversar sobre isso. Se o livro puder suscitar esse debate, gerar conversas, em uma direção que a gente possa resolver esses entraves, ficarei feliz. Mas, antes de tudo, ele é uma história que precisava ser contada e espero que os leitores gostem”, finaliza Adriana Vieira Lomar.
SERVIÇO
Livro ‘Ébano sobre os canaviais’, de Adriana Vieira Lomar
Editora: José Olympio
ISBN: 978-6558471370
Páginas: 240
Preço: R$ 59,90 (físico) | R$ 23 (e-book)
Outras obras da autora: “Carpintaria de sonhos”, “Aldeia dos mortos”, “Ambiguidades” e “Corredor do Tempo”