MAGO DAS LENTES
Nova exposição de Ailton Cruz propõe viagem fotográfica à Angola
Mostra "Angola: Viajando com os Olhos" revisita experiência no país africano e celebra a trajetória de um dos maiores fotógrafos de Alagoas


A meninada se juntava. Era uma festa. Na entrada da casa, cujo quintal dava na usina onde o pai trabalhava, todos caprichavam nas poses para o retrato familiar. No outro lado das lentes, numa Rolleiflex que ninguém ousava tocar, estava seu Zé Flor. Foi durante esses rituais domésticos, em Utinga Leão, em Rio Largo, no fim dos anos 1960, que o fotógrafo alagoano Ailton Cruz decidiu que o mundo cabia numa câmera. “A fotografia começou a fazer parte da minha vida dentro de casa. Papai não fotografava, mas sempre gostou de ser fotografado. Eu vivia encantado com essa máquina do seu Zé Flor, mas só podia olhar”, lembra.
Décadas depois desse fascínio virar destino, Ailton Cruz inaugura sua nova exposição individual, intitulada “Angola: Viajando com os Olhos”. A mostra será aberta após vernissage nesta quinta-feira, 28 de agosto, às 19h, na Galeria Cesmac de Arte Fernando Lopes. A curadoria é assinada por ele, por Alice Barros e por Robertson Dorta.

Aos 67 anos, o mago das lentes, reconhecido como um dos mais importantes fotógrafos e fotojornalistas de Alagoas, relembra o início da carreira, há quase meio século. Do preto e branco que demorava um mês para ser revelado até as fotos coloridas que o prenderam de vez ao ofício, o percurso de Ailton Cruz passa por redações jornalísticas, experiências no exterior e por publicações em sete edições de “O Melhor do Fotojornalismo Brasileiro”. Ele é fotógrafo da Gazeta, e também colaborou com veículos de São Paulo, como o Estadão, e de Lisboa, além de integrar a equipe brasileira que implantou o primeiro jornal de economia de Angola. Nada disso, afirma, categórico, o descola da simplicidade do ofício que escolheu na infância. Que, para ele, é feito de “observar, olhar de novo. Aproximar. Narrar com luz e sombra”.
A temporada angolana começou por um desvio de rota e se transformou em uma das experiências mais importantes da carreira. “Tudo começou por acaso, por volta de 2008, 2009. Quando eu fazia meu TCC sobre a favela do Jaraguá, um amigo, o Pascoal Gomes, levou o trabalho para um professor de antropologia na Bahia, Ricardo Ferrari. Anos depois, Pascoal me liga: ‘Você vai para Angola’. Disseram que seria por 15 dias, acabou virando quase um ano”, conta. “Lá eu aprendi demais: a convivência, as viagens pelas províncias, o contato com as tribos. Foi uma experiência que marcou minha vida e meu olhar. Para mim, essa viagem foi como ganhar um prêmio Esso”.
VIAGEM SEM INTÉRPRETES

É dessa aprendizagem e encantamento que nasce a nova exposição. Entre as fotografias selecionadas há imagens feitas nas províncias da Huíla e do Namibe, no deserto e nas comunidades dos Mucubá e dos Mumuila. Diversos personagens que aparecem nas fotos nunca tinham visto uma câmera. As crianças, lembra Cruz, ficavam encantadas com o moderno objeto. Repetindo, para que se note as extravagâncias do destino, o menino de Rio Largo que sonhava com a Rolleiflex do seu Zé Flor.
“Tem também a Serra da Leba, com suas curvas, e o cemitério de navios em Luanda. O público vai viajar junto”, diz Ailton Cruz, que faz questão de apontar o que fundamenta sua fotografia: “Eu quero que o público viaje comigo sem precisar de intérprete. Não quero uma exposição que dependa de alguém explicando. Claro que vai ter identificação dos povos retratados, como os Mumuila, com seus cabelos tratados com esterco e leite, mas acima de tudo quero que a imagem fale. A fotografia precisa ter essa autonomia: contar a história mesmo para quem não sabe ler”.

Cada quadro carrega um episódio. “Tem uma foto em que apareço no meio das crianças, quase como uma selfie, antes dessa moda existir. No cemitério de navios, passei um dia inteiro fotografando fuselagens e comecei a inventar diálogos entre os barcos, como se conversassem entre si. Cada imagem traz um pedaço da vida que encontrei lá”.
Não é, para ele, uma coleção de paisagens exóticas; é matéria de jornalismo. “O mais importante para o fotógrafo é focar no que ele quer mostrar. Não adianta só saber usar a câmera, tem que entender o que aquela imagem significa dentro de uma narrativa. Sempre digo: a melhor máquina do mundo são os nossos olhos”, instrui o mestre.
ANTES DE ANGOLA
A estrada que desemboca em Angola foi pavimentada com improviso, música e obstinação. No começo da adolescência, Ailton formou com amigos um trio nordestino que dublava clássicos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em escolas, rádios e até em circos. Pouco depois, viria o primeiro tropeço: fotografou os amigos da usina e as fotos reveladas voltaram escuras. Ele anotou os detalhes e refez tudo, e a imagem apareceu. “Ali eu aprendi que fotografia é aprender sempre. Eu continuo aprendendo e anotando tudo”.
O olhar também se definiu enquanto fotografava casamentos. Em uma dessas ocasiões decidiu tirar o flash e mirar os bastidores: o véu caindo, o noivo ajeitando a gravata. “Foi um casamento diferente. Descobri ali que minha fotografia era observar a vida acontecendo, não só a pose”.

À noite, a cadência vinha da percussão na Big Banda; de manhã, voltava às pautas e aos casamentos. Entre uma coisa e outra, foi até projetista de filmes: numa Brasília com alto-falante no teto, rolos comprados em Salvador e no Recife, sessões em usinas, fazendas e povoados.
“Acabei escolhendo a fotografia. E tudo isso me trouxe até aqui. A fotografia me deu família, carreira, amigos, viagens. Me deu tudo”, resume. “Gosto de fotografar. A vida me oferece imagens o tempo inteiro. Posso estar passando de carro e, de repente, vejo uma foto. Na exposição, quero que a pessoa olhe e sinta. Se a imagem falar, a viagem já começou”.
