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ENTREVISTA

A engenharia poética de Ana Maria Vasconcelos

Com “Longarinas”, autora alagoana é semifinalista pela segunda vez consecutiva do Prêmio Oceanos, um dos maiores da literatura em língua portuguesa

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A escritora Ana Maria Vasconcelos, um dos principais nomes da literatura contemporânea de Alagoas
A escritora Ana Maria Vasconcelos, um dos principais nomes da literatura contemporânea de Alagoas | Foto: MIK MOREIRA

Entre o silêncio e o risco da linguagem, Ana Maria Vasconcelos construiu sua própria casa. Uma arquitetura mínima, feita de fragmentos curtos, repetições quase imperceptíveis, pausas deliberadas. A busca da escritora parece a de alguém que depura o mundo até restar apenas o osso da palavra. Longarinas, seu livro mais recente, brilha justamente aí: no intervalo, no que não se diz, na respiração exata de cada poema. O gesto pode até parecer íntimo, mas ganha agora projeção nacional.

A obra da poeta alagoana foi selecionada entre os 50 semifinalistas do Prêmio Oceanos de Literatura, um dos mais importantes da língua portuguesa. A edição de 2025 bateu recorde de inscritos — 3.142 livros de sete países — e Ana Maria figura, pela segunda vez consecutiva, entre os nomes que atravessam a nossa língua. Sua escrita caminha ao lado de autores como Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Chico Buarque, mas em seus próprios passos: miúdos, incisivos, silenciosamente radicais.

Professora de literatura, pesquisadora rigorosa e poeta de formação inquieta, Ana Maria Vasconcelos é hoje um dos nomes mais consistentes da nova literatura alagoana. Sua obra, marcada por esse equilíbrio entre precisão formal e delicadeza temática, desafia a leitura apressada. E não é apenas por ser poesia, mas por ousar pedir pausa, escuta e presença.

O livro 'Longarinas' é semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura
O livro 'Longarinas' é semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura | Foto: MIK MOREIRA

Longarinas se organiza em fragmentos, como se o poema, ao ser lido de novo, reescrevesse a si mesmo. É a contramão, não intencional até certo ponto, dos estímulos excessivos que assistimos nos dessensibilizar.

Nascida em Maceió, em 1988, Ana Maria Vasconcelos cresceu entre livros e cadernos. A estreia veio em 2014, com Grão, publicado pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos. A obra lhe rendeu o Prêmio de Incentivo à Literatura, sendo ela a primeira mulher a recebê-lo. O segundo livro demorou quase uma década: Eram brutos os barcos, lançado em 2022 pela editora alagoana Trajes Lunares. O ritmo, no entanto, se acelerou nos anos seguintes. Em 2023, publicou dois livros: A raiz é como um raio (Editora Primata) e O rosto é uma máquina aquosa (Ofícios Terrestres), semifinalista do Oceanos na edição passada. Um ano depois, veio Longarinas.

Nesta entrevista exclusiva, Ana fala sobre esse processo de escrita que desafia a pressa, reflete sobre o papel da poesia num tempo de aceleração e superficialidade, e compartilha sua visão acerca de temas como inteligência artificial e o apagamento do tempo da leitura. Com fala firme e sem alarde, sustenta o que seus versos já anunciam: a linguagem, se bem escavada, pode durar mais do que nós. Vamos ao papo!

Ana Maria Vasconcelos é o destaque do Caderno B da Gazeta de Alagoas deste fim de semana
Ana Maria Vasconcelos é o destaque do Caderno B da Gazeta de Alagoas deste fim de semana | Foto: MIK MOREIRA

GAZETA DE ALAGOAS. Ana, é a segunda vez que você recebe a indicação ao Prêmio Oceanos. Que aspectos são diferentes para você em relação ao ano passado?

ANA MARIA VASCONCELOS. É sempre uma alegria alcançar o reconhecimento do nosso trabalho de alguma forma. Ser semifinalista de um prêmio tão importante pelo segundo ano consecutivo significa, de novo, poder falar de literatura em outros espaços, como este da Gazeta. Não sei se há algum aspecto realmente diferente; foram dois (bons) espantos.

No ano passado, você me disse que escrever era sempre agir contra a morte. Como essa percepção mudou ou se transformou nesse tempo que passou?

Estamos sempre lidando com a impermanência das coisas e com a nossa própria finitude. Eu citei o Octavio Paz na entrevista do ano passado (e trago esse verso duas vezes no Longarinas): “a palavra é filha da morte”. Escrever é um modo que encontramos de burlar a fugacidade da vida e continuarmos um pouco mais naqueles que nos leem.

Nos fale sobre o Longarinas. Como foi o processo? O que você destaca nesta obra?

O Longarinas tem um formato bem peculiar, reunindo poemas que se organizam por fragmentos sequenciados. Todos os poemas do livro têm esse formato e propõem imagens que retornam nos fragmentos seguintes com pequenas variações de sentido ou de ponto de vista. Vários poemas recorrem à etimologia das palavras para jogar com essa multiplicidade de sentido. Em outros, o recurso que utilizo para abrir esse leque de significados é o da citação (às vezes explícita, como no poema “inframince”, em que trago a voz de Duchamp; às vezes implícita, como em “matéria escorregadia”, em que a escritora Matilde Campilho é aludida no título e na repetição da ideia de “espanto”). O título do livro diz respeito tanto à sequência que liga os fragmentos quanto ao fato de os poemas trazerem sua estrutura exposta. O poema que leva o mesmo nome do livro diz: “fazer de cada linha / uma viga // roer até que sobrem / apenas / as longarinas”.

É importante destacar que o livro recebeu apoio da Lei Paulo Gustavo, por meio da Secretaria de Cultura de Alagoas. Esse apoio foi fundamental para que o livro fosse viabilizado.

Entrevista com a escritora alagoana Ana Maria Vasconcelos
Entrevista com a escritora alagoana Ana Maria Vasconcelos | Foto: MIK MOREIRA

Você também me falou que queria escrever um livro sobre o silêncio, desta vez em prosa. Esse plano segue de pé? Como essa temática continua a te provocar?

Estou há mais de um ano sem escrever nada novo, mesmo participando de algumas oficinas literárias, como a da Lilian Sais, que inclusive indico bastante. Acho que a temática do silêncio acabou se tornando literal demais! O plano segue de pé, mas cada livro tem um tempo próprio, não adianta forçar. Além disso, o texto também vai sendo gestado durante as pausas do escritor. É preciso um tanto de silêncio para que a ideia finalmente encontre o papel.

Na semana passada, ouvi de um escritor que, se temos poucos leitores, os de poesia são menos da metade de um terço. Em oposição a isso, noto uma empolgação (pelo menos na internet) da juventude com a poesia. Como você vê esses movimentos e por que a poesia é importante?

Certamente, o número de leitores de poesia é ainda menor se comparado aos leitores de prosa. Talvez porque a poesia nos exija um tempo de releitura. É possível que essa empolgação da internet com poemas curtos se dê justamente por trazerem a falsa sensação de leitura rápida. É mentira. Toda literatura exige pausa, mas a poesia, em particular, pede: é preciso reler o poema. E cada releitura traz mais uma camada de sentido. Literatura é isto, poesia é isto: polissemia, abertura, descoberta. Tempo. A poesia, em particular, tem esse poder de pausa que vai totalmente de encontro à loucura em que estamos imersos hoje, o que pode ser um bálsamo.

E o que a poesia significa para você, intimamente?

Eu tive um professor muito querido de Teoria da Literatura na UFRJ que sempre comentava que o verso é a unidade de linguagem mais difícil da literatura por concentrar uma gama enorme de possibilidades de sentido em um tamanho muito limitado de palavras. Ele brincava que o CT (Centro de Tecnologia, bloco que fica do outro lado da rua, em frente ao prédio de Letras) não fazia ideia do quão difícil era aquilo que nós estudávamos. Isso ficou comigo. A poesia é muitas coisas: é o homem em chamas correndo pela casa da prosa, como disse a Anne Carson; é o inutensílio do Manoel de Barros; é a trapaça da linguagem que permite ouvir a língua fora do poder, como disse o Barthes. Mas, para mim, é sobretudo isto: essa unidade de linguagem que nunca se esgota, que sempre se oferece a uma nova leitura, que carrega em si a capacidade de se desdobrar infinitamente em muitos e muitos sentidos diferentes.

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Uma publicação compartilhada por Ana Maria Vasconcelos (@ana.mvmc)

Há uma discussão em andamento acerca da inteligência artificial enquanto “autora” de “obras de arte”. Como você enxerga tudo isso?

O nosso contexto, qualquer que seja o tempo histórico, é algo incontornável. Hoje, a inteligência artificial é uma realidade que se impõe a quem faz arte e a quem escreve. No fim das contas, a arte sempre engolirá a tecnologia e será um comentário sobre o próprio tempo. Sempre haverá um desafio. O nosso, atualmente, é lutar contra as soluções aparentemente fáceis que a IA oferece e tentar enxergar que salto pode ser extraído dali.

A cena literária local segue em ebulição, como você mencionou na nossa última entrevista? No que as pessoas deveriam prestar mais atenção?

Vou destacar o espaço da Novo Jardim, livraria independente que agora está localizada no Centro Cultural Arte Pajuçara e conta com uma curadoria excelente da Érika Santos e do Richard Plácido (ambos também escritores que recomendo muito). Lá é possível descobrir obras alagoanas de diversos autores e editoras locais! Vale a visita.

SERVIÇO

A livraria Novo Jardim, mencionada pela escritora, fica no Centro Cultural Arte Pajuçara, em Maceió, e funciona de terça a domingo, das 14 às 20h.

É possível adquirir "Longarinas" pelo site da editora 7Letras (7letras.com.br), por meio da Amazon ou direto com a autora (@ana.mvmc).

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