CRÍTICA
O teatro alagoano se encontra no palco do Festijal, diz Lael Correa
Principal evento alagoano voltado para a infância e juventude teve sessões lotadas e grandes momentos


O Festival de Teatro para Infância e Juventude de Alagoas – Festijal, é um evento que se repete há quatro edições, mesmo em períodos críticos para as artes cênicas como é o atual. Porém, já na estreia do Festijal 2025, a apresentação de O Gato de Botas se revelou como um contentamento cênico inesperado, uma bela surpresa!
O Gato de Botas, encenado pela Cia. Vixe Maria, é uma dessas boas experiências que se tem em alguns momentos do teatro infantil (“teatro juvenil”, “teatro para a infância e juventude”, como quiserem rotular). A verdade é que o que separa o teatro da “primeira infância” do teatro “adulto” é a competência, a habilidade ou a vocação.
Pois nesses dias de apresentações teatrais do Festijal havia espectadores de todas as idades, além das crianças. Havia pais & mães, outros que provavelmente eram tios/tias ou avós. Adultos, jovens e crianças de todos os futuros e passados. Impossível não citar a senhora ao meu lado que estava amamentando uma criança muito pequena.

Uma mãe ofertando o peito pra amamentar um bebê no meio de uma plateia de teatro! É uma cena real e tão bonita que quase roubou a cena teatral dessa tarde no Festijal.
Mas as cenas comoventes em eventos assim são inumeráveis. Porque num festival desse tipo, onde a arte é quem define o tom, o tempo e as estórias (e histórias), tudo pode ser poético ou apenas engraçado. Todas as idades e todas as pessoas podem se emocionar ou apenas se divertir, se distrair ou “abstrair”. Em tempos de teclas e telas dominando, qualquer maneira de teatro vale a pena.
1º ATO
A primeira peça a se exibir no Festijal, O Gato de Botas, não deveria surpreender. Afinal, esse título é tão previsível – e tão clássico e repetido desde o século 17 – que a ideia de ver uma encenação com esse título pode parecer algo chato ou bobo.

No entanto, a estória criada pelo francês Charles Perrault (1628-1703), reaparece no Festijal com muita vitalidade e uma grande capacidade de comunicar e cativar o público que lotou o Teatro de Arena no dia 23.
Descontados os excessos que em alguns momentos beiram à caricatura, vale ressaltar a ternura que o diretor Igor Vasconcelos (que interpreta brilhantemente o personagem título) e todo o elenco dedicaram ao espetáculo. Surpreendem pela veracidade e o prazer de estar em cena; de interagir com a plateia e demonstrar o quanto investiram de carinho em cada cena, em cada uma das improvisações e em cada um dos caprichosos cuidados com a luz, a cenografia e as interações.
Sem “efeitos especiais”, a montagem de O Gato de Botas se utiliza de recursos visuais simples: duas cadeiras elegantes (para o Rei e a Princesa) e uma mesa simplória com dois bancos (para o Gato e seu Amo). O mínimo de artifícios e o máximo de comunicação com o público. Isso também define a iluminação e a sonoplastia: simplicidade e precisão. Driblando as deficiências técnicas do Teatro de Arena, O Gato de Botas consegue mesclar a graciosidade com a espontaneidade sem nenhum truque apelativo. O diretor e o elenco estão inteiramente à vontade para o jogo teatral com a plateia e conseguem manter de modo exemplar o equilíbrio entre a comicidade, a contação da história romântica e, principalmente, uma total interação com seu público.
2º ATO

No dia 24 de agosto foi a hora e a vez da Cia. Nêga Fulô, que também é a empresa produtora do Festijal, exibir a sua interpretação do inesquecível musical Os Saltimbancos. O musical é uma adaptação brasileira, feita por Chico Buarque em 1977 do disco infantil italiano “Il Musicanti di Brema”, de Sergio Bardotti e Luiz Enríquez Bacalov, que por sua vez é inspirado no conto alemão “Os Músicos de Bremen” dos Irmãos Grimm.
Descontadas todas essas “harmonizações teatrais” pelas quais essa montagem já passou, as músicas continuam inesquecíveis pra quem tem mais de 40 anos. Para as crianças de hoje, no entanto, temos que admitir a falta de “engajamento”. Sim, pois a versão feita por Chico Buarque de Hollanda tem contornos claramente antiditatoriais. De modo infantojuvenil, o musical é uma miscelânea de pérolas a favor do “povo unido jamais será vencido”. Exemplo disso é uma das músicas principais, — Todos Juntos Somos Fortes: “Somos flecha e somos arco / Todos nós no mesmo barco / Não há nada pra temer / Ao meu lado há um amigo / Que é preciso proteger / Todos juntos somos fortes...”.
Essa toada segue por toda a peça, que é um musical com todos os problemas que um espetáculo musical propõe: músicos excepcionais e cantores excelentes. A Nêga Fulô não oferece essa excelência, mas oferta algo mais precioso: a ousadia de encarar essa empreitada, relembrar questões político-sociais que precisam estar sempre em pauta e proporcionar ao público (novo e antigo) o prazer de ouvir mais uma vez essas canções.
Além disso, a Cia. Nêga Fulô faz uma oferta inestimável: o prazer de rever em cena alguns dos atores mais respeitados de Alagoas: Régis de Souza, Diva Gonçalves e Alderir Souza. São atores tão prestigiosos que realizaram, num só dia, duas sessões lotadas no Teatro de Arena Sérgio Cardoso.
3º ATO
No dia 30 de agosto o Festijal levou seu público para uma viagem com o Pavão Misterioso. Peça da Cia. La Casa, sob a direção (e adaptação de texto do cordelista João Melquíades Ferreira) de Alan Cardoso. Teatro popular, com direito a zabumba, triângulo, etc. - tudo ao vivo e com a direção musical primorosa.
Em alguns bons momentos de arte popular, sem frescura e sem piedade, a peça alça voo até alcançar o som do músico Gama Júnior. Mas é teatro de “cabra macho”. Com momentos de doçura, pois há as aparições do pavão/boneco e as canduras da heroína, a “bela (?) Creuza”. Mas não é um espetáculo que busca reflexão ou poesia. Do modo que foi encenada, a história nem deveria estar entre a Turquia e a Grécia. Ficaria melhor se situada no sertão, entre pedras, terra seca e mandacarus. É um pavão de terras inóspitas.

Pavão Misterioso não tem mistério: é teatro alagoano se fazendo do nada. Parece planejado para ser “teatro de rua”, mas é teatro de qualquer palco. E em períodos como os que estamos vivendo, as artes cênicas (dança, teatro, performance, circo) só existem porque os artistas não desistem. Abides, Alan, Gelly e todos esses artistas que encaram essas empreitadas cênicas, são mais que atores: são construtores do futuro da cena alagoana e suas conexões (cidadania, igualdade, identidade, “comida, diversão e arte”).
Pavão Misterioso é uma peça que poderia definir alguns dos desafios que temos pela frente no teatro alagoano. Além de tudo, tem uma bela sonoplastia, com uma pegada popular que não é misteriosa. É preciosa. E penso que isso se deve, em grande parte, ao mestre Gama Júnior, ao vivo, surpreendente e admirável.
EPÍLOGO
Meu Boi Mamulengo, peça que concluiu a temporada do Festival nesse 31 de agosto, foi escrita e produzida por Bethe Miranda, com a Cia. Teatro do Imaginário.
É um espetáculo que conta com artistas experientes, como o ator Marcos Vanderlei, a atriz/produtora Bethe Miranda e o encenador Pierre Pelegrinne. Artistas que somam suas habilidades para recontar uma antiga lenda que faz parte do folclore brasileiro. Trata-se da história de um boi que perdeu a vida, mas foi ressuscitado, dando origem à festividade do Bumba Meu Boi.
Na adaptação dessa antiga narrativa folclórica escrita por Bethe Miranda, um casal de empregados de uma fazenda, Mateu e Catirina, matam o boi predileto de um rico agropecuarista apenas para satisfazer um desejo de Catirina, que estava grávida e queria comer a língua do animal. Após a descoberta do boi morto, um pajé é chamado para tentar ressuscitar o animal.
Partindo desse mote da cultura popular, Meu Boi Mamulengo faz um mix de farsa e comédia escrachada, com direito a tiradas românticas e pitadas de arte circense. A peça comete alguns excessos nas caricaturas (e gritarias) mas acerta em diversos momentos, tirando proveito das boas marcações de cena e dos cuidados da direção, da cenografia e do figurino. Aliás, os cuidados visuais são caprichosos e eficientes. Na maior parte do tempo há o predomínio dos tons neutros, mas utilizando as cores intensas em momento muito bem escolhidos.
Graças à direção, aos cuidados com o tratamento visual e à competência do elenco, o espetáculo consegue recuperar essa curiosa lenda popular com a criatividade e a energia tão necessárias para esse atual período das artes cênicas em Alagoas.
CENA BÔNUS
Concluindo os comentários sobre o Festijal 2025, vale ressaltar a importância de projetos com esse poder de reunir os muitos artistas e os variados públicos que lotaram as sessões do Teatro de Arena. É um festival que, mais uma vez, demonstrou sua potência e capacidade de produzir artes cênicas. Aplausos e parabéns a todos os que estiveram no palco e na plateia.
*Lael Correa é ator, diretor, dramaturgo, crítico teatral e um dos principais nomes das artes cênicas de Alagoas