JARAGUÁ
Papel no Varal celebra a primavera com edição gratuita no Mercado das Artes 31
Projeto criado por Ricardo Cabús volta a Jaraguá na próxima semana e reafirma a poesia como experiência coletiva


No começo era o sisal. Uma corda estendida sobre o palco, um prego em cada ponta e cem poemas pendurados à espera da primeira mão que os escolhesse. Não havia cerimônias, luzes ou reverência, só o desejo de partilhar poesia, como quem busca uma fruta madura no quintal e a reparte com os seus. Em 2009, quando Ricardo Cabús puxou a primeira edição do projeto Papel no Varal, não havia certeza de que alguém viria. Vieram. E continuam vindo. Dezesseis anos depois. Há algo de essencial nessa troca proposta pelo agitador cultural de Maceió: pegar o papel, subir ao palco, emprestar voz à palavra alheia.
No dia 24 de setembro, o projeto volta a ocupar um dos espaços culturais mais simbólicos da capital: o Mercado das Artes 31, no bairro histórico do Jaraguá. A edição, batizada de “Flores”, celebra a chegada da primavera com uma seleção de cem poemas entre metáforas botânicas e brotos de emoção. No meio deles, versos de Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Mário Quintana, de poetas alagoanos e até mesmo de autores menos conhecidos, escolhidos com o mesmo zelo por Cabús, que assina a curadoria desde o início.
“Vai ter flor em algum canto — de forma metafórica, metalinguística, de tudo quanto é jeito”, diz ele, que ainda se diverte com a própria criação. “A ideia é tematizar um pouco, para não ficar muito genérico. Eu gosto das edições genéricas, aquelas que não têm tema nenhum, é só poesia por poesia. Mas essa vai ser com esse espírito, colocar o povo para ler poesia sobre flores, celebrar a primavera e a vida.”

Ao lado dos poemas, o público também encontrará música: o cantor e compositor Wado faz a intervenção musical da noite, oferecendo contraponto sonoro à atmosfera já marcada pelas palavras. O encontro entre verso e melodia, entre tradição e improviso, reflete a natureza do evento, que sempre acolheu múltiplos públicos, de leitores iniciantes a poetas veteranos, de quem nunca declamou nada a quem volta religiosamente a cada edição.
Ricardo Cabús, engenheiro de formação e professor por vocação, diz que não se contenta em ver a poesia restrita a bibliotecas e salas de aula. Tem pavor dos livros comprados apenas para enfeitar. “Acredito que o formato do Papel no Varal ajuda a romper barreiras”, afirma. “Muita gente que não gosta de poesia vai ao evento por outros motivos — entretenimento, por alguém que está lá — e chega, se encanta pela poesia. Já aconteceu de as pessoas subirem ao palco pela primeira vez porque estavam apaixonadas e queriam impressionar. Já me disseram: ‘Nunca li poesia, mas encontrei esse poema do Vinicius, ou do Mário Quintana, e quis ler’. Tenho muitas frases parecidas com essa na memória”.
Não há regras rígidas, mas duas orientações são repetidas a cada edição: não trazer de casa e não ler o próprio poema. Os textos são previamente escolhidos por Cabús e revisados por um conselho editorial ligado ao Instituto Lumeeiro. A cada evento, cerca de cem textos são impressos e pendurados com prendedores no varal de sisal. A experiência, porém, vai além da leitura. É também tátil, sonora, quase ritualística.

“O formato tem algo de único. Pegar no papel, subir no palco, sentir a emoção do público e a sua própria. É um prazer instantâneo, uma experiência multisensorial. Mesmo quem não sobe ao palco, leva o poema para a mesa, para casa. É um acolhimento à poesia”, descreve Cabús. “E cada pessoa participa como quer: lendo, ouvindo, observando. No Papel no Varal, todo mundo pode ser o artista principal. É como um karaokê, só que de poesia”.
Ao longo dos anos, o projeto reuniu cerca de 20 mil poemas em seu banco de dados. O que permite, detalha Cabús, brincar com o formato, criar temáticas. Isso, revela o poeta, é uma estratégia para não saturar a proposta, que sempre aparece de cara nova, mas sem perder a essência. “Temos um cadastro com cerca de 20 mil poemas, mas a maioria nunca foi usada. Os mais repetidos são aqueles clássicos, que gosto muito, como Drummond, Lêdo Ivo, Quintana, Vinicius”, enumera. Estima-se que mais de mil poetas diferentes já tenham sido pendurados, com novas descobertas a cada edição. “Coloco poetas de todas as idades, inclusive muitos jovens que nem sabem que estão no varal. Descobrimos um poema em algum lugar, gostamos, e colocamos”.
A memória mais marcante desses 16 anos veio no primeiro aniversário do projeto, em 2010. Na ocasião, Cabús e uma rede de colaboradores realizaram uma intervenção urbana noturna em Maceió, espalhando 28 mil poemas pela cidade. “No dia seguinte, fizemos saraus-relâmpago em todos os bares por onde passávamos. Saiu no Bom Dia Brasil, no Estadão, foi fantástico. Teve gente de parkour, bicicletada, foi uma operação poética coletiva. Tem um vídeo no YouTube: Intervenção Urbana Papel no Varal 2010. Recomendo ver”.
Mas não foi sempre fácil manter o projeto. A pandemia interrompeu as edições por quase dois anos. Quando retornaram, foi preciso recuperar o fôlego e reconquistar o público. “Hoje temos uma nova estabilidade. Um evento com 200 pessoas é um número fantástico para poesia — em qualquer lugar do mundo. Maceió tem uma plateia que gosta de estar onde tem poesia. Acredito que o projeto se consolidou porque encontramos um ponto de equilíbrio entre o que a gente gosta e o que o público gosta. Tem uma troca verdadeira”, reflete.
Cabús também faz questão de incorporar sugestões dos frequentadores. “A cada evento, mandamos um questionário para avaliar, com críticas e sugestões. E vamos incorporando o que dá dentro do nosso tamanho. Buscamos oferecer entretenimento e cultura de qualidade”. Entre os desafios, ele cita a estrutura, os custos crescentes e a dificuldade de encontrar espaços que acolham a proposta. “Nem todos os lugares acolhem a poesia como a gente gostaria. Então é uma busca constante”.
O Papel no Varal é gratuito, com inscrições pelo Sympla, e tem o patrocínio de Ao Pharmacêutico, Ouro Vermelho e Telesil Mais; e o apoio de Armazém Guimarães, Fika Frio, Doce Vida e IZP. A produção é do Instituto Lumeeiro.

Recentemente aposentado, Cabús escolheu dedicar mais tempo ao que realmente o move. “Me emociono vendo alguém lendo poesia. Quando vejo que estou contribuindo para alguém viver uma emoção que talvez não teria sem aquele empurrão, isso me alimenta. É o prazer de fazer e de ver acontecer”.
Enquanto muitos ainda discutem se a poesia está morrendo ou se foi engolida pelo algoritmo, Ricardo Cabús faz questão de dizer que não. Ele aponta que em cada poema pendurado há um pouco de fé no que pode florescer. “Os meios mudam sempre. A poesia já foi escrita com pena, em papel de linho. Hoje, temos outras tecnologias. O Papel no Varal mistura tradição e modernidade. Faço a curadoria usando tecnologia, mas imprimimos os poemas e penduramos no varal, como no cordel. O importante é o encontro. É essa possibilidade de pessoas, desconhecidas ou não, se encontrarem nos versos. A poesia precisa estar perto do povo, só isso. É isso que importa”.