CULTURA
A arte no invisível
Após residência em Nova Iorque, Giovanna Gomes fala em entrevista sobre o ‘ir além do que é concreto’


Entre a memória e o futuro, entre o chão batido do Sertão de Alagoas, as águas azuis do mar de Maceió e as ruas de Nova Iorque, a artista visual Giovanna Gomes traça caminhos que transformam pedra, terra, parede e cor em territórios de imaginação. Após passar por residência artística na cidade que dita os rumos da arte contemporânea, a alagoana, que leva consigo as marcas da ancestralidade negra e nordestina, conquistou curadores e público com sua exposição “Superfícies Ocultas: Geografia do Invisível”, que aconteceu paralelamente ao período de residência. Um verdadeiro mergulho criativo que ajuda a enxergar o invisível nas superfícies que habitamos.
Nascida na capital alagoana, Giovanna Gomes carrega no olhar as cores e texturas do Nordeste. Entre pedras, terra vermelha, água salgada e superfícies do interior, ela aprendeu a transformar o que é bruto em sensibilidade estética. Se primeiro a fotografia surgiu como curiosidade de registro do cotidiano, logo se tornou território de invenção, com uma linguagem visual capaz de provocar sensações e deslocar percepções.
Formada em Jornalismo em 2024, Giovanna encontrou na fotografia documental um ponto de partida, mas não um limite. A experiência com narrativas jornalísticas a levou a perceber que seu caminho se voltava menos para a informação direta e mais para a criação de imagens que abrem brechas para o poético. Assim, a prática artística se impôs como continuidade natural de sua busca.

A arte que ela produz nasce daquilo que parece mínimo, fragmentado ou invisível. Uma parede descascada, a textura de um tecido, as cores e asperezas da pedra. Todos esses elementos tornam-se matéria simbólica. Na transformação, a artista revela um modo de ver o mundo em que cada superfície carrega história, memória e resistência.
A abstração surge como escolha estética e política. Ao evitar a representação literal, Giovanna abre espaço para que ancestralidade, afetos, medos e alegrias se condensam em cor e textura. Criar, para ela, é afirmar presença, sem se prender às expectativas externas sobre como uma artista nordestina deve falar de seu território. Na liberdade da abstração, sua voz encontra potência.
Esse gesto também é político. Giovanna reinventa materiais e memórias, ressignificando o que por vezes foi silenciado ou invisibilizado. Ao fazer da matéria metáfora, constrói territórios de imaginação onde passado e futuro se encontram. Suas imagens não oferecem respostas prontas, mas provocam pausas e convidam o olhar a explorar fissuras e camadas escondidas. O que está diante dos olhos de todo mundo, mas que ninguém consegue enxergar.
E foi com essa bagagem, esse olhar diferenciado e esse talento para a arte que Giovanna participou de uma residência artística organizada pela Saphira & Ventura Gallery, em parceria com a New York Contemporary Art Society. O contraste entre o Nordeste brasileiro e a intensidade da metrópole norte-americana alimentou sua pesquisa, expandindo as possibilidades criativas e profissionais da artista.

Dessa experiência, nasceu o projeto “Superfícies Ocultas: Geografia do Invisível”, uma exposição que aproxima fragmentos do Brasil e dos Estados Unidos em uma cartografia inventada e cujas obras, Giovanna pretende expor no Nordeste brasileiro.
Em conversa com a Gazeta de Alagoas, Giovanna Gomes falou sobre sua trajetória e a capacidade de enxergar arte onde ninguém vê. Em meio à correria do cotidiano, ela convida o público a parar diante de algo bruto e fazer o exercício de observar os detalhes, dando novos significados a algo que, aparentemente, não tem valor algum.
GAZETA DE ALAGOAS - Me conta um pouco da sua história e como surgiu o interesse pela arte visual?
GIOVANNA GOMES - Nasci em Maceió e minhas raízes estão profundamente ligadas ao Nordeste brasileiro. A fotografia entrou na minha vida primeiro como um olhar curioso para o cotidiano, mas logo se transformou em prática artística. Eu me formei em Jornalismo em 2024. A graduação me proporcionou contato com a fotografia documental, fotografia de rua. Nos primeiros dois anos de faculdade, eu percebi que meu caminho estava mais ligado à criação de imagens que expandem os limites da narrativa, não apenas informando, mas provocando sensações e questionamentos. A arte visual foi uma extensão natural dessa busca.
De que maneira suas raízes alagoanas e nordestinas influenciam sua prática artística?
Minhas raízes estão em tudo. As pedras, a terra vermelha do Sertão, a textura da água do mar alagoano, os tecidos, superfícies do interior…todos esses elementos aparecem nas minhas obras. O Nordeste me ensinou a ver beleza na resistência, no detalhe, no que muitas vezes é invisível para quem olha de fora. Essa herança se manifesta como matéria-prima, mas também como pulsação estética.
Quando fala sobre seus trabalhos, você relaciona muito à ancestralidade e à memória. Quais memórias e referências mais atravessam sua produção?
As memórias da minha família, especialmente a resiliência dos meus pais, são fundamentais. Cresci vendo histórias de luta e de superação, e sinto que minha prática é uma forma de me agarrar a essas trajetórias e criar um mundo onde é possível sonhar, criar, ir para o lúdico, ir além do que é concreto e bruto. A história, na minha obra, aparece como fragmento: como camada e como cor, mesmo quando não é literal.
O que significa, para você, traduzir a experiência vivida em linguagem abstrata?
A abstração me permite dizer o indizível. Não se trata de representar de forma direta, mas de criar um campo de sensações onde a experiência pode ser sentida pelo outro. É como se a vida, com suas forças, sutilezas, fissuras, pudesse ser vista sob outra dimensão.

Como você escolhe os materiais e superfícies que utiliza como ponto de partida para suas obras?
A escolha é intuitiva, de momento. Ela acontece quando sou atravessada pelo território que habito ou pelo espaço que me atravessa, é algo muito íntimo. O que me fisga são as ranhuras, fissuras.
De que forma a cor e a abstração entram como protagonistas no seu trabalho?
Muitas vezes parto da cor para construir atmosferas que podem ser tanto solares quanto densas. A abstração é a forma que encontro de fazer com que as texturas ganhem a dimensão que eu vejo, que eu quero criar. Gosto da ideia de romper com a expectativa de uma imagem documental para se abrir a múltiplas leituras.
Você define a fotografia como um campo aberto ao poético e ao político. Pode nos contar mais sobre essa ideia?
Para mim, criar já é um ato político. Abstração, na minha obra, aparece como liberdade. Porque me dá espaço para cravar presença sem me encerrar em expectativas externas, sem ter que, necessariamente, narrar. A abstração permite que eu comprima minha ancestralidade, minhas memórias, meus medos e alegrias em cor, textura. Tudo isso está lá, mesmo que não apareça de modo figurativo.
Sua prática foi descrita como uma “abstração política”. O que esse conceito significa no seu dia a dia como artista?
Significa entender que mesmo quando crio imagens aparentemente distantes da realidade, elas carregam histórias, amores e dores. A abstração política é o gesto de transformar materiais invisibilizados em potência estética, sem apagar suas origens. É, no fundo, um modo de recontar histórias sem cair na literalidade.
Como surgiu a oportunidade de participar dessa residência e qual foi sua motivação em aceitar?
A residência surgiu como uma oportunidade de atravessar fronteiras e levar minha pesquisa a um novo território. Recebi o convite da galeria Saphira e Ventura, que tem base em Nova Iorque. Minha motivação foi viver o contraste de sair do Nordeste brasileiro e me confrontar com a intensidade de Nova Iorque, levando comigo minhas raízes, minhas cores e minhas superfícies.
Quais foram os maiores aprendizados até agora nesse período em Nova Iorque, tanto no campo artístico, quanto no profissional?
Artisticamente, aprendi a olhar o urbano como matéria. A superfície urbana dialogou com minha pesquisa. Profissionalmente, foi importante entender como o circuito internacional funciona e como posso ocupar esse espaço mantendo minha voz própria.
O projeto “Superfícies Ocultas: Geografia do Invisível” nasce dessa experiência. Com o que o público se depara nessa exposição?
O público pode esperar um convite para atravessar a superfície e perceber aquilo que normalmente permanece oculto. As obras reúnem fragmentos do Nordeste e de Nova Iorque, criando uma geografia inventada onde matéria, cor e memória se sobrepõem. Nessa fusão, o visível e o invisível coexistem, revelando texturas, camadas e tensões que não oferecem respostas imediatas, mas provocam o olhar a decifrar sentidos e a descobrir narrativas escondidas no abstrato.

Como tem sido o contato com outros artistas, curadores e instituições de arte em Nova Iorque?
Tem sido transformador perceber as novas possibilidades de diálogo. Percebo que meu trabalho tem ressonância com diferentes percepções e culturas.
Qual a importância de ocupar espaços como este, de projeção internacional, para artistas brasileiros, especialmente mulheres e nordestinas?
É fundamental. Muitas vezes o olhar sobre o Brasil é centralizado no eixo Rio–São Paulo. Estar aqui como artista nordestina é afirmar a potência do meu território e da minha identidade. Para mulheres, essa ocupação também é um gesto político: mostrar que nossas vozes são plurais e precisam ser ouvidas.
Você acredita que sua experiência em Nova Iorque vai transformar sua maneira de criar?
Sem dúvida. Cada deslocamento amplia o olhar. Sinto que minha pesquisa vai ganhar novas camadas, e que o diálogo entre o Nordeste e o urbano global vai se tornar cada vez mais presente na minha obra.
Quais são seus próximos passos depois da residência? Há planos de levar essa exposição ou outros projetos para o Brasil?
Quero sim levar esse projeto para o Brasil, especialmente para o Nordeste. Também desejo expandir a circulação internacional, em diálogo com galerias e instituições. Meus próximos passos estão ligados a aprofundar essa pesquisa, sempre com o olhar voltado para minhas origens.
Qual mensagem você espera que seu trabalho deixe para o público, seja em Nova Iorque, no Brasil ou em qualquer parte do mundo?
Um convite a parar diante do que é bruto, concreto, e deixar que a mente, o olhar vá além daquilo. É dar atenção a uma pedra, a uma superfície, a um fragmento do mundo e permitir que dali surjam memórias, conversas, imagens lúdicas. Minhas obras não oferecem respostas prontas, não acredito em verdades absolutas. Acredito no espaço de pausa, onde a matéria, por menor que seja, ganha outra importância e dimensão.