Quando a dança cria o mundo
Cia. de Dança Deborah Colker apresenta 'Sagração' em Maceió nesta sexta e sábado
Na obra, mais importante ballet do País transforma cosmogonias, mitos e movimentos em poesia do corpo


No centro do palco escuro, o gesto — anterior à própria língua falada — conta a história. A “avó do mundo” risca o vazio com o corpo. E a vida, então, surge ali. É assim que começa o espetáculo “Sagração”, mais recente trabalho da Companhia de Dança Deborah Colker. A obra é uma travessia pelas formas da vida, pelos riscos que antecedem a história e os corpos que narram antes mesmo da escrita. Em Maceió, a oportunidade de ver a versão brasileira de “A Sagração da Primavera”, que escandalizou Paris em 1913, será nesta sexta (3) e sábado (4), às 21h, no Teatro Gustavo Leite. Ainda há ingressos disponíveis.
“O espetáculo começa com a avó do mundo. E tudo só poderia ter começado com uma mulher”, afirma Deborah, que passou dois anos e meio investigando os pontos de origem que atravessam cosmogonias indígenas, mitos judaico-cristãos e o evolucionismo. “A dramaturgia nasce da poesia desses encontros, dessas perguntas que nos cercam há milhares de anos. Que mundo é esse? Onde a gente chegou?”.

A consagrada coreógrafa foi até o Xingu, durante a cerimônia do Kuarup, para recolher narrativas de criação diretamente com os povos Kalapalo e Kuikuro. O cineasta Takumã Kuikuro narra, em cena, a história do Urubu Rei que trouxe o fogo ao povo do chão. Essa passagem é dançada com cuidado. Não há didatismo. Há fabulação e pulso vital para percorrer a história da vida.
A trilha original de Stravinsky, marco da música do século 20, é mantida — mas atravessada por coco, samba, afoxé, maracás e paus de chuva. A orquestra se abre para a floresta. A música se agita no ritmo do corpo. “Stravinsky levou tudo ao limite. Nós fomos até o nosso”, diz Alexandre Elias, diretor musical da obra. “Misturamos estruturas complexas com vozes do Xingu, tambores e flautas de madeira. O que chega ao público é a força que emana dessa massa sonora”.

No palco, 170 bambus de quatro metros são movimentados pelos bailarinos. São ao mesmo tempo floresta, canoa, lança, abrigo e céu. São cenário e extensão do corpo.
O percurso é contínuo. Durante 70 minutos, sem intervalo, o espetáculo atravessa 14 cenas. Primeiro surgem os seres rastejantes, bactérias e quadrúpedes, em coreografias rentes ao chão. Depois, a Eva de Colker: negra, parida por uma serpente vestida com rendas escamadas. Eva come a maçã e inaugura a desobediência, que aqui não é culpa, é impulso vital. “Ela se distingue, se reconhece, se transforma. Depois desaparece dentro do coletivo humano. Já não é mais importante. Agora, é como todo mundo”.

A história de Abraão, retirada do Gênesis, aparece numa canoa que navega sobre o palco. É uma travessia sem sacrifício, onde o personagem bíblico segue em busca de si mesmo após um chamado. Não há céu aberto. Há tons azulados e dúvidas. Em seguida, vem o fogo, a caça, a agricultura, o conflito. “Cada passo na evolução já é um sacrifício”, diz Deborah. “E a peça termina antes do fim”.
O que seria o sacrifício final — como na montagem de 1913 — é aqui deslocado. A “queda do céu”, mito ianomâmi, toma a cena. A avó volta, silenciosa, para anunciar que algo está errado. Os bambus caem como colunas vencidas. Tudo desaba. Mas a coreografia não fecha em ruína. Ela se suspende. Literalmente. Em um momento impressionante de dança e expressão corporal que apenas a maior companhia de dança do Brasil poderia oferecer.

No último quadro, a avó do mundo é embalada em uma rede indígena e levada ao alto. Os bailarinos amarram os bambus caídos e os puxam com cabos de aço. “É simbólico. Ninguém vai resolver isso sozinho”, diz Deborah. A cena acontece ao som de um samba. O fim é coletivo, suspenso, inacabado — como todo recomeço.
Fundada em 1994, a Companhia Deborah Colker é hoje o principal grupo de dança do Brasil, com mais de duas mil apresentações em 35 países. No ano passado estreou Sagração no Theatro Municipal do Rio com sessões esgotadas. Agora, volta à estrada. A obra é inspirada livremente na “Sagração da Primavera”, de Stravinski, que rompeu paradigmas no seu tempo. A reinvenção de Colker era necessariamente revolucionária, não só para se alinhar com a carreira da coreógrafa lendária, como também para dialogar com uma evolução que nos envolve enquanto brasileiros, miscigenados, cercados por mitos tão diversos. “Para seguir um artista que rompeu tanto com a ordem, era necessário romper também”, diz Deborah.
Serviço
Onde: Teatro Gustavo Leite – Centro de Convenções de Maceió
Quando: 3/10 (sexta-feira) e 4/10 (sábado)
Abertura da casa: 20h
Horário do espetáculo: 21h
Classificação indicativa: 10 anos
Quanto: De R$ 25 a R$ 160
Vendas: Viva Alagoas – Maceió Shopping | Barão 486 • Cantão – Passeio Stella Maris – Jatiúca | Online
Há audiodescrição em todas sessões.