LITERATURA
Rosalvo Acioli lança livro bilíngue e revisita 41 anos de poesia, memória e rigor
Num perfil que percorre infância, crítica, autocrítica, solidão criativa e reconhecimento tardio, Rosalvo Acioli reafirma a poesia como destino, mas, principalmente, fruto de "muito trabalho"


Dizem que poetas veem o mundo inteiro em poesia. Numa esquina vazia, poesia. Na onda que quebra, poesia. Na poça d’água que se forma após a chuva cair. Sempre há poesia. Talvez seja por isso que, em meio à busca por construir seu eu poético, Rosalvo Acioli foi taxado de louco e distraído. Mas não estava com a cabeça nas nuvens enquanto passeava pelas ruas do centro de Maceió, mas em estado de poesia. Ele, entretanto, não romantiza o ofício. Pelo contrário. “Ninguém nasce poeta”, afirma, enfatizando que um poeta continua nascendo enquanto vive.
“Eu fui chamado de louco mais de uma vez. Principalmente na infância e adolescência. Pelos colegas. E confesso que isso resultou em ecos importantes na minha personalidade e, talvez, até hoje me faça ser um pouco tímido”, diz, afirmando não guardar ressentimentos. “Percebi que a loucura não estava em mim. Estava em quem não compreendia o que eu estava tentando fazer com as palavras. Capturá-las”.
Aos 70 anos, Rosalvo lança Sorgen des Orpheus, seu 12º livro, em uma versão especial e bilíngue, em português e alemão. O lançamento ocorreu no dia 2 de dezembro, no Palato Farol, em Maceió. O livro chega no momento em que o poeta revisita sua trajetória de 41 anos desde a estreia em Sonhos Imaginários (1984) — período marcado tanto pela persistência silenciosa quanto pelo reconhecimento que, durante décadas, veio primeiro de fora de Alagoas.
A formação literária de Rosalvo nasceu cedo, entre suplementos dominicais que o pai colocava sobre a mesa e os primeiros rascunhos em cadernos escolares. Um dos poemas inaugurais, “Le carrousel bleu”, surgiu de uma lembrança dos nove anos: a menina que, girando num carrossel na Praça da Faculdade, o observava com curiosidade. “Esses acontecimentos da infância se transformaram em poesia antes de eu saber o que era poesia”, diz. “Eu apenas sentia que precisava escrever”. O impulso foi se sofisticando com o tempo, mas a matéria-prima permaneceu: memória, detalhe, espanto.

Com o correr dos anos, o gesto do poema se tornou inseparável da autocrítica. Rosalvo nunca se deixou guiar pela urgência de publicar ou pelo comportamento hiperbólico de determinados críticos. “Eu fui entendendo que escrever exige vigilância permanente”, afirma. “Autocrítica não é opcional. É o que separa uma intuição de um poema”. Quando jovem, chegou a preparar um livro inteiro, mas decidiu guardá-lo por décadas, retalhando-o aos poucos até incorporá-lo em obras posteriores. O movimento nada tinha a ver com indecisão. Seu trabalho, revela, envolve cortar, reelaborar, recomeçar. Quantas vezes for necessário.
A trajetória pública começou em 1984, quando Sonhos Imaginários foi lançado pela Global Editora, em São Paulo, recebendo indicações ao Jabuti e ao prêmio da Academia Brasileira de Letras. As leituras externas foram decisivas. Luciana Stegagno-Picchio escreveu que seus poemas eram “belíssimos”. Jorge Cooper afirmou que sua obra representava “um marco no movimento literário do Brasil”. Lêdo Ivo registrou que, através de seus versos, pôde “revisitar Maceió” por meio de “fragmentos luminosos”. Antonio Candido destacou a “complexidade tornada fluida pela afinidade com o leitor”, enquanto Ferreira Gullar o definiu, sem ornamentos, como “poeta de verdade”.
Enquanto isso, o trânsito local sempre foi mais árduo. Rosalvo lembra de eventos esvaziados que organizou, de mesas em que foi esquecido, de uma espécie de indiferença recorrente. “Eu fui ficando à margem, ignorado, deixado de lado. Mas nunca guardei rancor porque o rancor destrói”, diz. “O que me sustentou foi o trabalho e a consciência de que a minha poesia estava sendo lida. Se não aqui, mas lá fora”.

Mesmo assim, ele continuou escrevendo. Na madrugada, na pausa entre afazeres, nas caminhadas. “Às vezes a ideia surge na rua, e eu passo muito tempo repetindo a frase mentalmente para não esquecer até chegar em casa. Fico segurando o verso como quem segura um pássaro”, diz. É nesse ritmo que surgiram Inventário de Cinzas (2014), Árvores Tristes, que até teve tradução para búlgaro — e, em 2024, Arritmias, livro que marcou os 40 anos da estreia.
A edição bilíngue de Sorgen des Orpheus nasceu de acaso semelhante: um leitor encontrou um poema seu num blog adormecido, traduziu, gostou e o escreveu. Vieram outros poemas, mais traduções, mais correspondência. “Ele me disse que já tinha lido mais de mil livros. Mesmo assim, encontrou algo que ressoou ali”, conta. “E me pediu para continuar enviando. A partir disso, veio a ideia de editar em alemão. Eu deixo as coisas acontecerem no tempo que têm que acontecer, assim, naturalmente”.
O novo livro retoma uma inquietação antiga, a tensão entre memória e perda, a insistência em olhar para trás sabendo que, como no mito, sempre há risco. Rosalvo não vê sua poesia como confessional, mas admite que seus poemas carregam marcas. “A minha vivência está neles. Memória, reflexão, experiência, tudo aparece”, afirma. Entre essas marcas, há a sombra luminosa de Jorge de Lima. “Eu me sinto assemelhado a ele nesse mover-se literariamente, nessa busca por contatos, nesse desejo de fazer o melhor pela literatura”, diz. É uma afinidade que ele descreve como enigma, não intelectual, mas quase espiritual.

“Eu sempre tive a compreensão de que não se nasce poeta. Divirjo de Jorge de Lima nesse ponto”, diz. “Escrever poesia não é juntar palavras. É sensibilidade, imaginação, memória, criação e, sobretudo, autocrítica. Se não houver autocrítica, o texto pode até ser publicado, mas não se sustenta.”
A rotina que segura esse rigor começa cedo, antes de o sol nascer. Ele acorda por volta das quatro, às vezes quatro e meia, senta diante da tela ou do papel. O restinho da madrugada funciona, diz, como uma espécie de intervalo entre o mundo e o que ele precisa escrever. “Eu acordo com essa disposição de fazer alguma coisa, mesmo que seja pouco”, conta. Depois de escrever, é reescrever, apagar e começar de novo. É tormentoso, mas sempre foi assim”.
O rigor não se dirige apenas à página, mas ao lugar que a literatura ocupa em sua vida. Nas conversas, Rosalvo insiste que o escritor precisa saber o que quer dizer e para quem está falando. “Eu sempre me pergunto se o que escrevi tem alguma utilidade para o leitor”, afirma. “Nós só existimos como autores porque existe um leitor soberano. Sem ele, não há livro que se justifique”. A frase sintetiza um cuidado com o que oferece aos leitores que, segundo Rosalvo, o acompanha desde o Colégio Guido de Fontgalland, o “Velho Casarão”, onde foi incentivado por professores e pelo cônego Teófanes Augusto de Barros, e atravessa suas leituras de Dante a Rilke, de Augusto dos Anjos a Lêdo Ivo. O que chama de “influxos” — e faz questão de diferenciar de influência — criou um repertório amplo, mas não um modelo a imitar. “Eu não trabalho com influência direta, aquela coisa de ler um poeta e tentar fazer igual. Eu chamo de influxo. Eu tenho meu estilo desde o início, porque compreendi cedo que não poderia ser mimético. Imitar é um erro grave. Cada poeta precisa encontrar o seu discurso pessoal”.

A ideia de transcendência, recorrente em sua poesia, aparece também quando o assunto é a própria vida. Católico de formação, leitor atento de autores espíritas, ele fala da morte sem espanto, mas com certa esperança. “Eu acredito que exista uma vida espiritual depois do desencarne. Não sei explicar como, é um mistério. Mas tenho uma confiança de que a consciência continua, de uma forma ou de outra”. A reflexão não é gratuita. Para quem acorda todos os dias às quatro da manhã e insiste em reescrever poemas, escrever é também uma forma de atravessar o tempo.
Ao olhar para a produção contemporânea, sobretudo a mais jovem, Rosalvo é menos conformado. Vê um número enorme de pessoas publicando poesia, mas poucas dispostas a enfrentar o próprio texto. “Há muito livro inconsistente, muita gente que acredita que juntar palavras é fazer poesia”, afirma. “Falta autocrítica, falta estudo, falta leitura de bons autores brasileiros e estrangeiros. Vejo muito desespero por reconhecimento e pouca disposição de se colocar numa trajetória longa, trabalhosa. Quando alguém escreve poesia panfletária, panfletária no pior sentido, também está desperdiçando a possibilidade de fazer algo mais complexo, por exemplo”, diz, ao ser perguntado sobre a influência da política e dos tempos atuais na poesia feita hoje. “O político está em tudo. Inclusive na poesia que não fala diretamente de política. Muitas vezes, há posicionamentos meus, mas ele está ali sem tentar convencer ninguém”.
Ao lançar seu 12º livro, o autor alagoano diz que, caso ainda o chamassem de louco, como faziam em sua adolescência, não mudaria nada. Continuaria acordando antes do sol, anotando versos na palma da mão, perseguindo imagens que ninguém vê, admirando-se com a beleza girando no carrossel da vida. A mesma “loucura” que o acompanhou na infância agora apenas encontra outro nome: poesia — e ele segue escrevendo.
