DUILIO GOMES
‘Manas’: a água que afoga o silêncio
CRÍTICA: Filme de Marianna Brennand transforma cotidiano do Marajó em denúncia social e política


“Manas” nasce de uma geografia que aprisiona. Não apenas pelo mapa, mas pela lógica de um Brasil onde o Estado falha antes mesmo de chegar. Nas margens de Marajó, o filme constrói uma claustrofobia líquida: são as águas do rio que cercam e sufocam; são as necessidades básicas submersas num IDH de miséria; é o silêncio ribeirinho transformado em método de sobrevivência. Marianna Brennand filma essa asfixia sem pressa, mas com precisão, transformando cada remoada, cada travessia e cada muro de água numa metáfora do enclausuramento social que condena meninas ao destino que não escolheram.
Marcielle, interpretada por Jamilli Correa, sustenta o eixo emocional do filme com uma economia quase mineral. Seu rosto raramente sorri; sua expressão, sempre em suspenso, denuncia a vida que não se move. Há algo de João Cabral nesse olhar: uma secura que queima mais do que mostra. A violência nunca é explícita, porque o que importa aqui não é o ato, mas o mundo que o produz. Esse cuidado ético, assumido pela diretora, retira o espetáculo do trauma e o devolve à sua dimensão humana e política.
No universo de “Manas”, a violência é um rio subterrâneo que corre entre casas frágeis, igrejas que pregam resignação e instituições que chegam tarde demais. A submissão torna-se doutrina: introjetada pela religião, naturalizada pela pobreza, garantida pela omissão. As mulheres de Marajó carregam essa cruz estrutural. A mãe, Danielle, é o rosto mais duro desse ciclo: conivente não por maldade, mas por construção. Brennand escolhe mostrar como o trauma rearranja afetos e percepções, criando mulheres que confundem o agressor com o provedor, o cárcere com abrigo.

“Manas” denuncia como quem abre lentamente uma porta para revelar o inevitável. Nada é teatral; tudo é firme. A câmera observa. O roteiro avança como uma verdade que se impõe. Não há música que alivie, nem discurso que explique. Há apenas a força do cotidiano e a mecânica do abuso reproduzida com rigor.
O desfecho é uma navalha. Não pela violência, mas pelo diagnóstico. Quando a protagonista age, o gesto é menos vingança e mais resposta histórica. A salva de palmas registrada nos festivais não é pelo ato, mas pelo acúmulo de injustiça que ele simboliza.
A película entende que há algo de profundamente político no desejo de romper o ciclo, mesmo quando o Estado fracassou em fazê-lo. A cena final não propõe solução. Abre ferida. Expõe uma sociedade que empurra meninas para a beira do abismo e depois as culpa por saltarem.

“Manas” é cinema de realismo que não precisa gritar, porque carrega um país inteiro na voz embargada de uma menina. É obra que olha para a Amazônia sem exotismo, mas com urgência. É denúncia que se sustenta no que não mostra, naquilo que a sociedade insiste em varrer para debaixo das águas. Um filme que, tal como o rio que o inspira, corre por baixo, arrastando tudo o que encontra: silêncio, culpa, violência, ausência.
No fim, o que permanece é a certeza incômoda: a verdadeira claustrofobia não vem das águas, mas daquilo que permitimos que cresça dentro de nossas casas.
Onde assistir: Telecine e demais streamings com opção de locação.
