Duilio Gomes
Um homem tentando caber onde não existe espaço
Crítica: “The Mastermind” revela a exaustão silenciosa do fracasso americano; filme transforma o cotidiano desgastado em crítica política e desconforto emocional


O filme começa como quem acorda atrasado. Nada explode. Nada avança. Tudo já está um pouco errado.
The Mastermind, de Kelly Reichardt, não se interessa pelo assalto. O assalto acontece cedo demais, quase sem importância. O filme quer outra coisa: observar o que vem depois, quando o gesto já foi feito e não há mais como fingir que se é alguém diferente.
Estamos em 1970. Mas isso importa menos do que parece. A sensação é de hoje. E só depois, com algum desconforto, a gente entende: esse “hoje” vem de um lugar antigo. Um lugar chamado Estados Unidos. A promessa. O discurso. A cobrança invisível para ser alguém relevante dentro de uma casa, de uma família, de um país.

Josh O’Connor interpreta esse homem como quem carrega um peso que não sabe nomear. Ele anda devagar, fala pouco, olha como quem pede licença para existir. Não é ambicioso. Não é genial. Não é carismático. É apenas um sujeito que entendeu, tarde demais, que fracassou no papel que lhe foi entregue.
A paleta de cores do filme trabalha em silêncio. Marrons, verdes gastos, uma luz de fim de tarde permanente. A imagem não ilustra a história, comenta. Às vezes parece um diálogo direto com quem assiste: nada aqui vibra. Nada promete futuro. Tudo já está em processo de desgaste.
O plano que move a narrativa não nasce de ganância, mas de exaustão. A pressão para ser um vencedor naquela sociedade o adoeceu. Não no sentido espetacular da palavra. Adoeceu de forma comum. Doméstica. Um adoecimento que faz o sujeito pisar na própria identidade física e espiritual sem perceber.
O roteiro é econômico e honesto. Não se perde em furos gritantes, mas também não corre para justificar nada. Reichardt confia no tempo, no gesto pequeno, no silêncio que dura um pouco mais do que o confortável. É um filme lento — e essa lentidão não é pose. É um gesto político. Um descanso raro para um espectador treinado a reagir o tempo todo.

Enquanto isso, o mundo insiste em entrar pela janela. A Guerra do Vietnã surge em rádios ligados, televisões ao fundo, conversas interrompidas. Não é contexto decorativo. É um país inteiro falhando enquanto esse homem falha sozinho. Macro e micro colapsando juntos, sem discursos explicativos.
A família depende dele. E ele sabe. Essa consciência atravessa cada cena. O filme não pergunta “o que vai acontecer?”, mas “quanto tempo ainda é possível sustentar essa farsa cotidiana?”. Quanto tempo um homem aguenta ser aquilo que nunca conseguiu ser.
Reichardt não oferece redenção. Não oferece lição. Observa. E, ao observar, constrange. Porque não há vilões claros. Há um sistema que promete demais e devolve pouco. Há um sujeito que acreditou tempo suficiente para adoecer.
The Mastermind é um ótimo filme justamente por se recusar a ser importante. Ele apenas mostra. E o que mostra fica. Não como impacto, mas como incômodo persistente. Como aquelas ideias que não fazem barulho, mas voltam dias depois, quando a gente percebe que talvez nunca tenha cabido mesmo no papel que tentou viver.
Disponível na plataforma MUBI.
