MADRINHA DA NOITE
Rosa Mossoró, a herdeira da noite maceioense que reinventou a boemia
Produtora cultural e artista abriu espaço na cena noturna para a diversidade e criou pontos de resistência que moldaram gerações na capital alagoana


Era uma ferveção. As pessoas se apertavam, dividiam o espaço com obras de arte e, vez ou outra, trombavam com os próprios artistas ali no meio da noite. Do lado de fora, os mais calorentos papeavam e dançavam na calçada, tendo a Praça Rayol, em Jaraguá, como cenário. A música vinha de uma anacrônica jukebox ou dos pandeiros e violões que surgiam de repente. Não raro, uma canção conquistava todas as vozes e um coral inesperado se formava em plena madrugada. Assim eram as noites quentes no Espaço La Rosa Mossoró, ponto incontornável da noite alternativa maceioense da última década. O charme da simplicidade e aquelas cores dançantes à meia-luz viraram memória afetiva de quem tinha na vida noturna do bairro histórico um território de identidade ou, até mesmo, uma casa.
A dona do espaço sempre fora a atração principal. Herdeira da noite boêmia, Rosa Mossoró é filha do lendário Benedito Alves dos Santos, o Mossoró, que comandou o Tabariz, icônico cabaré de Jaraguá, e a boate e churrascaria Areia Branca, no bairro do Canaã, que fechou há 30 anos. Bem antes disso, no entanto, Benedito Mossoró deu sua contribuição para que a filha abrisse o Zanzibar, antecessor do La Rosa. É com ele que uma nova história da vida noturna maceioense começa.
“Faz quarenta e oito anos. Eu queria botar um bar, desses que hoje chamam de alternativo e que naquela época se chamava bar gay. Eu ia para os bares da cidade e ficava sempre pensando: ‘se eu venho aqui encontrar as pessoas, por que eu não coloco um negócio pra mim e reúno todo mundo lá?’”, relata Rosa Mossoró, sentada no sofá de casa.

A conversa foi regada a boas risadas e histórias paralelas. Mossoró nunca morou em outro lugar que não fosse Jaraguá e seu entorno. Aos 68 anos, vestida de branco dos pés à cabeça por causa de uma promessa, ela fez questão de nos mostrar as dezenas de quadros de artistas plásticos alagoanos que coleciona na estreita casa, que lembra pouco o bar que ela comandava, e também morava, anos atrás. “Só bar não”, ela corrige, “espaço cultural”.
“Pronto, retomando a história… eu decidi montar o Zanzibar. Fui pedir, claro, ao meu pai pra me dar, inicialmente, um bar. E ele me deu foi um baile. Disse: ‘não, eu não vou lhe dar um bar. Quero que você seja uma médica’. Eu olhei assim pra ele e disse: ‘ô pai, não tá no meu sangue ser médica, né?’”.
O destino de Rosa Mossoró estava diretamente ligado ao do pai. Porém, ao mesmo tempo, seguia em uma direção completamente diferente. O “Rei da Noite” era um homem poderoso, que circulava em todas as esferas da sociedade maceioense. Era quase mítico, mesmo sendo dono de cabarés e maestro do prazer e da diversão. Filho de trabalhadores rurais e ex-pintor de paredes requisitado, tornou-se empresário da noite quando Jaraguá ainda abrigava prostíbulos que recebiam marinheiros e políticos.

Mais tarde, com a transferência das casas de diversão para o Canaã, consolidou a boate Areia Branca ao ponto de ser citado em músicas de Martinho da Vila e Djavan, e homenageado por governadores e outras autoridades. Morreu em dezembro de 1994, e a boate resistiu menos de um ano após sua morte. Rosa era proibida de frequentar os empreendimentos do pai.
“Mas só ele poderia me dar esse bar. Ele não aceitava de jeito nenhum. Então, eu fiz uma promessa para o Senhor do Bonfim: prometi que, se Mossoró mudasse de ideia e me desse o Zanzibar, eu usaria branco para o resto da minha vida. E um tempinho depois ele resolveu que ia me ajudar”, detalha Rosa Mossoró.
O espírito, se é que se pode chamar assim, do Zanzibar e do La Rosa Mossoró é o mesmo, garante a proprietária. “Quando entrei na noite, eu percebi imediatamente que eu não poderia apenas ter um bar. Na época, os gays, que a gente chamava de ‘entendidos’, não tinham um lugar seguro para ser quem eram. Era uma coisa muito triste. Eu resolvi fazer da minha casa a casa deles. E eu queria isso. Nunca quis um bar normal, queria era uma casa, um espaço cultural. Foi o que eu fiz”.

Rosa sempre morou nos seus negócios. No Zanzibar, havia uma casa separada do local em que recebia os clientes. Quando o Zanzibar virou La Rosa Mossoró, os espaços se fundiram. O respeito ao espaço da anfitriã, no entanto, sempre existiu.
“A noite era o abrigo deles. Dos entendidos. Eu era o abrigo deles. E isso moldou, sim, uma geração inteira de maceioenses, de todas as classes sociais. Quantos não vinham chorando para o Espaço La Rosa Mossoró, sem casa, sem lugar para ir, e encontravam uma comunidade. Eu dava muito conselho. Eles choravam nos meus braços. Perguntavam: ‘madrinha, por que meu pai não me aceita?’ E eu sempre tentava encontrar um entendimento. Dizia pra se colocarem no lugar dos pais, que tentassem entender aquele tempo que a gente vivia”, conta Mossoró.
Os tempos não gostavam da boemia. Nem da arte. Nem dos artistas. Nem dos “entendidos”. Por isso, Rosa Mossoró resolveu ser a “madrinha da noite”. E ela admite: só ela poderia. “Era tudo muito escondido, mas eu não. Nunca me escondi ou escondi que o meu bar era feito para proteger tudo isso. Eu sabia que, na época, meu pai tinha muito dinheiro e muito poder. Nada ia acontecer comigo, nem com eles, enquanto estivessem no meu espaço”.
Mesmo assim, ela tomava precauções. Às duas da madrugada, trancava o portão com cadeado. Ninguém entrava, ninguém saía. “Eu tinha muito medo de deixar eles soltos. Muitos não tinham dinheiro para pegar carro, ficavam esperando ônibus ou sabe-se lá o quê. Eu pensava, então, nas mães. Como mãe, eu não ia querer filho meu sentado na calçada. Eu trancava o bar até o dia amanhecer. Eles se deitavam em qualquer canto, no sofá, e ainda iam comprar pão pra gente tomar café”, lembra.

Hoje, aposentada das noitadas, mas não da madrugada, Rosa Mossoró conta que acorda faltando dez para as quatro da manhã, todos os dias. “Eu amo pedir a bênção de madrugada, pedir a bênção do tempo. Eu sou Ekedi, não gosto de acordar tarde. Acho que acordar tarde é uma doença, uma coisa que vai nos consumindo”, diz.
Na rotina da madrinha da noite maceioense residem as lembranças. De vez em quando, ela passeia entre os quadros oferecidos por artistas que frequentavam o Espaço Cultural La Rosa Mossoró e o Zanzibar. Os rostos aparecem na memória e o sentimento, segundo ela, é de orgulho.
“Eu sou uma guerreira, menino. Tenho muito orgulho de mim mesma. E não me arrependo de nada que eu fiz. Se fosse viver de novo, viveria uma vida igualzinha a esta que eu tô vivendo. E tenho muito orgulho do meu pai. Por mais que ele fosse dono de cabaré, ele foi um homem respeitado, com um grande coração, honrado. Me orgulho demais do ‘Pai Velho’, do Biu, do velho Mossoró. Meu pai foi minha história.”
Rosa Mossoró diz que não responde se não chamá-la assim, pelo nome composto. E lembra que, no começo, confundiam seu empreendimento boêmio de arte e acolhimento com as casas de diversão que o pai teve. “Meu negócio era totalmente diferente. É muito importante pontuar isso. Bastante gente ia lá perguntar, porque imaginavam que, por eu ser filha do Mossoró, tinha o mesmo tipo de casa. Mas sabe o que eu dizia? Aqui só tem mulher barbada! E despachava.”

Ela também pinta quadros. Prefere, diferente da maioria dos que colorem suas paredes, os abstratos. E diz que a história não acabou, apesar de o Espaço La Rosa Mossoró ser um dos negócios que não reabriram depois da pandemia de Covid-19.
“Não fiz outro espaço porque aqui é muito estreito. Mesmo assim, o pessoal vem aqui, vem olhar os quadros, conversar comigo. Eu acho ótimo. A noite continua com a mesma beleza. O povo entendido continua lindo! E eu lutei muito por isso. Eu fico maravilhada com o mundo, com a evolução”, afirma Rosa Mossoró.
E continua: “Eu quero ser lembrada assim, com alegria. Não quero ver ninguém chorando. Todo mundo fará a passagem um dia. Na minha, quero festa. Quero que as ‘yag’ de hoje digam para as de amanhã que Rosa Mossoró existe. E não é só um espaço, é uma mãe, uma madrinha. É isso que eu quero. Quero ser lembrada com carinho, com amor. E se quiserem festa, pode chamar drag queen, fazer uma folia onde eu for enterrada. Eu sempre dizia, quando eles chegavam tímidos e até chorando: não gosto de timidez. Vamos gargalhar! E, de repente, estavam gaitando. Eu adorava”.
