Cidades
Projeto Peixe-boi abandona estação no litoral alagoano

FERNANDO VINÍCIUS Repórter Porto de Pedras - Doze anos depois da reintrodução pioneira do casal de peixes-boi Astro e Lua, em dezembro de 1994, no mar de Paripueira, o Projeto Peixe-boi, responsável pela reintrodução do mamífero em extinção em ambiente natural, vai de mal a pior em Alagoas, de acordo com denúncias dos próprios monitores do projeto no Estado. Depois de repovoar com sucesso o animal na costa nordestina - o projeto tem sede em Itamaracá (PE) - o programa vai perdendo força em Alagoas, por falta de infra-estrutrutura de sua sede local, em Porto de Pedras, na Praia do Patacho. Os monitores reclamam da falta de condições de trabalho para desenvolver as atividades no mar. Eles estão sem veículos para deslocamentos ou algum tipo de embarcação que os leve ao encontro dos quatro animais devolvidos à natureza em território alagoano, que são monitorados por sistema de radiotelemetria. A Gazeta esteve em Porto de Pedras, município do Litoral Norte, considerado um santuário do peixe-boi em Alagoas, e constatou a real situação do monitor Gilvan Silva Fortunato. Ele tinha acabado de cumprir parte de sua jornada diária, como responsável pelo acompanhamento da fêmea Lua e só consegue vê-la de perto porque pega carona com um amigo, que faz passeios com turistas em uma embarcação movida a motor. Gilvan tem 47 anos, deixou de ser pescador e atua como monitor desde 1993, ano do início do projeto no Estado. Durante esses quinze anos de trabalho no Projeto Peixe-boi, administrado pelo governo federal por intermédio do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) com a ONG Fundação Mamíferos Aquáticos, Gilvan participou de diversos treinamentos na Bahia e no Ceará. Apesar do tempo de trabalho, ele disse que só teve carteira assinada por dois anos, período em que a Prefeitura de Paripueira atuava como parceira do projeto e ele era fichado como serviços gerais de uma empresa terceirizada contratada na época. Há mais de um ano sem ter qualquer tipo de veículo, ele sobe diariamente o morro onde o farol de Porto de Pedras foi instalado. Do ponto mais alto da cidade, privilegiado ponto de vista para o mar, ele liga seu equipamento para se certificar da presença de Lua. Gilvan tem um motivo a mais para aumentar sua dedicação. Tudo indica que Lua está prenhe, estado que inspira maiores cuidados porque a espécie gera apenas um filhote a cada gestação em intervalos de pelo menos quatro anos. ### Monitores lembram aventura de Lua em seu primeiro parto Porto de Pedras - O monitor Gilvan Fortunato considera que há 70% de chances de Lua estar buchuda e lembra a primeira gestação, ocorrida em 2002, fruto do contato com os machos Boi Voador e Araketo, animais reintroduzidos à natureza na Praia de Patacho. Lua ficou sem o aparelho que transmite sinais para o rádio no final do período de prenhez - 13 meses - e havia necessidade constante de deslocamentos para localizá-la. Com a ajuda do monitor Elias Cavalcante dos Santos, eles viajavam de moto para os locais onde Lua era vista. Gilvan e Elias percorreram várias áreas onde Lua teria sido vista sem conseguir encontrá-la para recolocar o aparelho transmissor que possibilita o acompanhamento via rádio. Eles, então, foram informados de que Lua estava na Praia de Porto de Galinhas, em Pernambuco. Entraram em contato com a base alagoana do CMA, em Maceió, na Praia de Riacho Doce, para comunicar a ocorrência. Segundo os monitores, a resposta foi que dessem um jeito, pois não tinham como oferecer o suporte necessário. Após conseguir uma ordem de abastecimento eles seguiram para o local indicado, mas não encontraram o animal. Sem autorização para acompanhar a operação nos dois dias seguintes, surge a informação de que Lua havia parido no Rio Maracaípe, no vizinho Estado de Pernambuco. FV ### Peixes-boi enfrentam inimigos em AL Porto de Pedras - A situação vivida em 2002, com a prenhez de Lua, deveria servir de alerta para o que está acontecendo em Porto de Pedras. Elias Cavalcante trabalha há nove anos no Projeto Peixe-boi e é atualmente responsável por monitorar três animais - as fêmeas Tuca e Nina e o macho Aldo. Ele está de férias desde o início de novembro e ninguém foi colocado em seu lugar. De acordo com o supervisor de campo Cícero de Oliveira, a informação passada pela chefia é de que não há recursos. Maus-tratos Entregues à própria sorte, os três peixes-boi estão sendo vítimas de maus-tratos por parte de pessoas que os encontram facilmente na ponte que divide os municípios de Porto de Pedra e São Miguel dos Milagres. O rádio que fica preso à nadadeira caudal de Tuca foi retirado duas vezes, informa o monitor, preocupado. O aparelho foi entregue aos monitores - Gilvan e Elias residem em Porto de Pedras - por pessoas da própria comunidade, consciente da importância dos cuidados com os mamíferos. Maria Josenilda Holanda Ribeiro mora próximo à ponte onde os peixes-boi costumam aparecer. Os fundos da sua casa ficam próximos ao leito do rio margeado pelo mangue. Quando a maré sobe, eles tomam água que sai do cano da casa vizinha. Crianças e turistas Eu vejo as crianças abusando deles, mexendo nos equipamentos dos bichinhos aí todo dia, conta Josenilda Ribeiro, mais conhecida como Roberta. Ela e o marido, Lenildo Pedro da Silva, são colaboradores do Projeto Peixe-boi e lamentam o abandono dos animais na Praia de Porto de Pedras. Quem está fazendo alguma coisa por eles somos nós, garante Roberta. Elias conta que no último dia 22 passava em um ônibus pela ponte quando viu pessoas jogando pedras nos animais. Roberta disse que é comum adultos darem refrigerante e até cachaça aos bichos. ### Docilidade é barreira para adaptação Além da exposição a situações que podem machucá-los, o contato freqüente com os seres humanos traz outros prejuízos para os peixes-boi. Animal dócil, é facilmente domesticado e se acostuma com a presença do homem, motivos que dificultam o processo de adaptação à vida selvagem. Quando a reportagem da Gazeta esteve no chamado riachinho de Porto da Rua, os peixes-boi não se encontravam no local. A reportagem acompanhou Gilvan e Elias para tentar encontrá-los em locais indicados pelos monitores, como a barra do rio Tatuamunha. A Gazeta conseguiu localizar Tuca na Praia da Laje, contato feito visualmente, pois o sinal que identifica a freqüência dela estava ruim, mesmo a uma distância de cerca de 30 metros. Lua estava a uma distância de cerca de oito quilômetros, segundo Gilvan, porém com sinal mais claro e alto. O repórter fotográfico entrou no mar para tentar fotografar Tuca, apesar de Elias achar que ele não conseguiria porque o animal se afastaria. Para surpresa do monitor, Tuca não só permaneceu onde estava, como se aproximou do fotógrafo. A convivência com as pessoas está modificando o comportamento dela. Eu mesmo já passei mais de uma hora tentando pegar a Tuca para recolocar o cinto que prende o equipamento e agora vejo um negócio desses, comentou Elias. |FV ### Ibama: falta coordenação ao projeto Porto de Pedras - As investidas para recolocar o sinal no peixe-boi ou desencalhar o animal obrigam o monitor a entrar em águas sujas, como o leito do riachinho de Porto da Rua. O risco não é coberto por plano de saúde e eles alegam que não há assistência em caso de doença. Elias teve a carteira assinada depois de cinco anos de trabalho e ganha atualmente R$ 383, da Fundação Mamíferos Aquáticos. Elias tem uma filha de 3 anos e sua esposa está com dois meses de gravidez. Ele teme ser demitido por conta das denúncias apresentadas, assim como Gilvan Fortunato, que atualmente recebe R$ 503 da ONG. Eles reivindicam melhores condições de trabalho e reclamam que são humilhados. A moto que servia aos dois foi levada para uma revisão há três meses. Eles não sabem dizer quando o veículo será devolvido. As diárias no valor de R$ 30 para despesas com alimentação não estão sendo liberadas e contam apenas com a amizade dos colaboradores para comer e se necessário dormir durante os eventuais deslocamentos. A bicicleta do próprio Elias não serve mais, a maresia comeu, explica. Os dois afirmam que estão habilitados para guiar moto, carro e embarcações de até 90 pés. Outro lado Para o chefe da sede nacional do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA), do Ibama, o oceanólogo Régis Pinto, os problemas são de ordem institucional e cita a ausência da coordenadora executiva para o Estado desde a saída de Carolina Alvite, que ocupou o cargo durante 5 anos e atualmente está no Maranhão onde foi aprovada em concurso do Ibama. Parceria à vista Ela atuava como contratada e o cargo está vago em Alagoas. Régis considera a situação de Gilvan e Elias privilegiada porque é o único lugar do Projeto Peixe-boi onde existem dois monitores na mesma área. Sobre o substituto de Elias, Régis disse que Gilvan deveria estar fazendo a cobertura e acrescentou que este se acidentou com a moto fora do horário de serviço. Para o prefeito de Porto de Pedras, Rogério Farias, a situação merece maior atenção. Ele declarou que tem intenção de estabelecer uma parceria com os órgãos que administram o Projeto Peixe-boi para melhorar a preservação do animal. Podemos criar alternativas que gerem emprego e renda para o município por meio de mais um atrativo turístico, de modo que não prejudique a espécie e ajude na sua conservação, declarou Farias. Régis Pinto considera a iniciativa interessante, mas informa que ainda não houve contato oficial da prefeitura com o Ibama. FV ### Projeto Peixe-boi do Ibama nasceu na década de 80 O Projeto Peixe-boi foi criado em 1980 pelo governo federal para avaliar a situação em que se encontrava o peixe-boi marinho no litoral do Brasil. Criada em 1989, e trabalhando em co-gestão com o CMA, a Fundação Mamíferos Aquáticos (FMA) fortaleceu o projeto, atuando na execução de atividades conservacionistas. Com autonomia para captar e gerar recursos para o programa de conservação, a FMA passou a atuar como co-gestora do Projeto Peixe-boi, aumentando os esforços para a conservação da espécie. Além disso, a durabilidade e a solidez do patrocínio oficial da Petrobras ao Projeto Peixe-Boi Marinho, desde 1997, culminaram no sucesso das ações de conservação desta sensível e ameaçada espécie. A espécie Trichechus manatus manatus (peixe-boi marinho) encontra-se criticamente ameaçada de extinção, enquanto a espécie amazônica, Trichechus inunguis, é classificada como vulnerável à extinção, segundo o Plano de Ação para Mamíferos Aquáticos do Brasil (Ibama, 2001). Projetos Devido ao status de conservação e às diferenças biológicas e ecológicas entre as duas espécies, tornou-se necessário o desenvolvimento de dois projetos: o Peixe-boi Amazônico e o Marinho. Na década de 80 o Projeto Peixe-boi Marinho promoveu a conscientização do risco que a espécie corria de desaparecer do litoral brasileiro. Em 1989, com as recomendações do projeto, o peixe-boi foi citado na Lista Oficial Brasileira de Espécies Ameaçadas, até então recém-criada, do Ibama. ### Mamífero continua na lista dos animais em extinção Com a criação do Centro Peixe-Boi em 1990 e sua promoção para Centro Nacional de Pesquisa, Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos em 1998, o Projeto Peixe-boi passa a ser um dos projetos executivos do CMA, executado em conjunto com a FMA. Na segunda década do projeto os esforços foram concentrados em minimizar o estado de conservação do peixe-boi, através do alcance de metas estrategicamente traçadas e avaliadas. Para cumprir sua função, o Projeto Peixe-boi resgata, reabilita e reintroduz peixes-boi em seu hábitat. A reprodução e o nascimento de filhotes em cativeiro também são elementos importantes dessa estratégia, tendo sido registrado o primeiro nascimento de peixes-boi gêmeos da América Latina na Unidade de Resgate e Reabilitação do Projeto Peixe-Boi. Há registros vitoriosos de animais que passaram por esse processo, foram reintroduzidos e hoje são monitorados diariamente em seu ambiente natural pela equipe técnica do Projeto, através da radiotelemetria. Ao todo, a equipe do projeto já resgatou 35 peixes-boi, salvos de cativeiros inadequados ou vítimas de encalhes. Depois de passarem por um profundo processo de reabilitação, nove desses animais foram devolvidos com sucesso à natureza. Dois outros encontram-se em fase de readaptação à vida selvagem no cativeiro natural do projeto, localizado em Barra de Mamanguape, na Paraíba. Esses números são bastante expressivos, considerando que a espécie contabiliza o alarmante número de cerca de 500 animais em vida livre na costa brasileira e faz do peixe-boi marinho o mamífero aquático brasileiro mais ameaçado de extinção.