Cidades
Meu Rei liberou a poligamia e fez moeda

Na Fazenda Metafísica e Teológica Princípio de um Reinado, como o líder ?Meu Rei? denominava o seu povoado de 33 famílias no Vale do Catimbau, todo homem podia ter quantas mulheres pudesse. Mas ? calma, mulheres! ? não se tratava de nenhum preceito árabe ou machista. Toda mulher também podia gozar livremente de quantos parceiros o seu desejo alcançasse. ?E não era nada de esculhambação, ele queria apenas mostrar que todos somos livres para amar, desde que cada um agüente a história em que está se metendo?, lembra o agricultor Luiz Carlos da Silva, 31, casado apenas com uma mulher. ?Livre-arbítrio, sabe, pode escrever aí, era isso que ele mais gostava de dizer?, ajuda a seguidora Maria do Carmo de Moura, 53 anos, solteira. Na moral do religioso, ?um cristianismo muito evoluído?, como sustenta a mesma Maria, Deus não metia a colher no jeito escolhido pelos viventes para amar e suportar a rotina. Só um costume o incomodava: o jogo de futebol. No terreiro do seu palacete, não permitia. Mas não era pelo esporte em si, acodem os fiéis que preservam a tábua até hoje. É que os rachas e peladas davam muitas brigas e rapapés entre os seus afilhados. Essa história que as competições unem não faz sucesso por lá. ?Como une? A gente só vê tapa e confusão onde tem uma bola?, fala de novo dona Maria. Proibição mais séria se referia à matança de animais. Fosse um boi ou uma galinha. Que só se sacrificassem criação longe do seu reino. Ali mesmo, de jeito nenhum. No seu tempo, havia a fartura de legumes e verduras, trabalho muitos vezes coletivo, no que muito lembrava o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Era uma comunidade liderada pelo beato José Lourenço no município do Crato, no Cariri cearense, cujo povo foi massacrado. Lá, no alvorecer do século XX, cerca de mil pessoas foram chacinadas pela Polícia Militar. Pela primeira vez as Forças Armadas, ainda medonhas com os acontecidos do arraial de Canudos, usaram bombardeio aéreo para destruir aquele ?reino? produtivo cujas terras foram doadas pelo contraditório Padre Cícero de Juazeiro _ uma vela para Deus outra para o coronelismo. Velho dilema Só para lembrar o velho dilema (veja texto principal nesta página) da mídia versus a caatinga, nos arredores do Caldeirão pena hoje em dia um acampamento do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Dinheiro também é um deus-nos-acuda nesse mundo perdido. A ?Fazenda Metafísica e Teológica Princípio de um Reinado?, que mais parece verso do paraibano Zé Ramalho, tinha a sua própria moeda: o ?Talento?, hoje apenas uma moldura na parede do palácio do ?Meu Rei?. Ele pretendia aprovar o uso, pelo menos na sua área, junto ao Banco Central. Cansou de pedir aprovação da papelada. Emitiu mesmo assim um lote de cédulas, sem deixar, porém, nenhuma dívida interna descoberta para os seus seguidores. Um talento, forte, valia sempre mais do que a unidade mínima da moeda nacional. Em uma mesa de comida maior do que a da ceia larga, o líder reunia os chefes de família da sua fazenda ? a terra foi herdada por dois filhos, mas com usufruto dos seguidores ? uma vez por semana. As necessidades, as precisões, duas das palavras mais ditas na nação do semi-árido, eram ali discutidas. A notícia de alguém passando fome nos arredores inquietava a todos. Maria do Carmo de Moura herdou essa preocupação mais do que ninguém naquele mundo. Anda léguas nos sítios do Vale do Catimbau para socorrer um velho desamparado. ?Num basta a aposentadoria se não tem ninguém para mexer um caldo ou dizer alguma coisa para quem anda pelo fim da vida terrena?, ensina.