Cidades
Aposentados animam a Barcelona potiguar

XICO SÁ Enviado especial a Barcelona (RN) *** A caminho do sertão do Seridó, uma Barcelona no meio da caatinga. Ao invés da ferveção dos jovens turistas nas grandes ramblas da capital catalã, uma roda de aposentados é o que anima o comércio e a vida semi-árida na cidade-xará. Na casa de cada um deles, uma penca de netos à espera de comida e um agrado dos avós. A ajuda se estende, também, a vizinhos necessitados. A velha-guarda, museu de tudo e da fome histórica, sabe o que faz. Por volta do dia 15 de cada mês, quando se encerra o pagamento de 500 aposentadorias na agência dos Correios - todas no valor mínimo de R$ 240,00-, a Barcelona potiguar, onde vivem 4.727 criaturas, se acalma mais ainda. O movimento de bodegas e mercadinhos despenca. Seus donos tiram sestas à espanhola, sem problemas. Os fregueses somem. Só um forró aqui e outro acolá sacode os barcelonenses. No Semi-árido, tudo é estômago e espera. Até no divertimento do baião, Luiz Gonzaga já lembrava: ?Quando tu balança/ dá um nó na minha pança?. Outro museu da sabedoria brasileira, o etnógrafo Luís da Câmara Cascudo, filho do Rio Grande do Norte, já zoadava com o mesmo badalo em 1947: ?Dize-me o que comes e direi se és realmente homem do teu país.? Na roda dos aposentados, José Targino, 77 anos, tem uma trajetória marcada pelo feijão com rapadura. ?Isso é luxo numa terra dessas. Se precisar gasto todo os meus 240 mil- réis, mas não deixo uma criatura passar necessidade na minha redondeza?, prega, avô de...? uns trinta?. Teve 14 filhos, ?só quatro morreram? ainda em botão, novinhos. ?É um prazer botar comida pra todo mundo?, diz. A moça dos Correios chama o seu nome para receber o benefício a que tem muito direito. Na Barcelona potiguar, as casas ficam de portas abertas e a solidariedade dos mais velhos tira lágrimas do mais seco e sem-adjetivo dos homens. Ninguém lembra mais da última morte. Algum pequeno furto? Culpa dos forasteiros, esses enxeridos que mexem com as moças durante forrós e vaquejadas e subtraem galinhas para tira-gosto da cachaça. A gente de fora também anda assustando com perseguições de carros a mulheres de todas as idades. ?Severina Ferreira do Nascimento?, chama a moça dos Correios. Dona Severina dá um ?viva? para os céus e vai receber os seus R$ 240,00. Tem 71 anos nas feições semi-áridas. Idade que vale por dez, em matéria de teimosia e sobrevivência, Matusaléns bem-criados da Barcelona espanhola de bons vinhos e farta mesa. Teve poucos filhos para os padrões da sua época. ?Só sete?. Só dois escaparam. Difícil achar quem tenha todos os rebentos vivos. ?Meus amores, Deus sabe o que faz, não tenho do que reclamar não?, diz, diante do piedoso do repórter. Quase todos os aposentados saem da agência dos Correios com os polegares manchados pela tinta do analfabetismo. A polícia fica na porta, para evitar que algum forasteiro -?cabras safados que aprenderam as ruindades da capital?- se aproveite do dinheiro alheio. A marca de tinta no dedo, em muitas regiões do sertão nordestino, é sinal para que ladrões identifiquem e roubem os mais velhos. Outra Severina é chamada pela moça que faz o pagamento. Isabel Severina da Silva, 75 anos, oito filhos, escaparam cinco. Rita Sotero, 85 anos, nove filhos, só dois criados. A fila anda. ?Foi o Padim Ciço que marcou o dia da feira daqui, toda segunda, foi o meu Padim, andado pelo mundo, que mandou botar o nome de Barcelona aqui?, diz. ?Inventaram de mudar a feira para o sábado e nada deu certo direito; aí foi o jeito obedecer o meu Padim e voltar tudo de novo?. Em sofisticada revista eletrônica sobre a cidade, o escriba da terra, Adriano Medeiros Costa, revela que o batismo Barcelona deve-se a um antigo ex-prefeito que havia trabalhado em um seringal amazônico homônimo. Ao visitar a cidade, diz a revista, não espere do barcelonense um ?is us plaus? (por favor, em catalão). Muito menos um ?moltes gracies? por agradecimento. O endereço da publicação é www.barcelonarn.hpg.ig.com.br . Dia de pagamento dos aposentados, elite da Barcelona potiguar. Os velhinhos estão podendo. Arrumam até casamento fácil com mulher nova cheirando a leite. ?Num diz Luiz Gonzaga que pra cavalo velho o remédio é capim novo, né??, cutuca José Ferreira de Vasconcelos, 79 de vida. As velhinhas também podem, mas não são bestas em cair no conto do interesse alheio. ?Eu sou lá besta de botar um traste de um macho dentro de casa, só pra me engambelar??, é o que dizem. As ramblas do Semi-árido se animam. Uma briga de jegues é acompanhada, quadro a quadro, pelo repórter fotográfico U. Dettmar, companheiro de viagem. Os meninos correm atrás do fotógrafo, fuzuê. Um caminhão vende panelas e quinquilharias no crediário aos aposentados. Com a chegada do programa Fome Zero, pelo menos 300 famílias vão acrescentar mais recursos para comprar comida no município ainda este mês. Mais panelas serão vendidas nas redondezas, apostam. O cheiro de feijão, com rapadura e nacos de carne, graças ao dinheiro dos mais velhos, sobe no vento. Hora da sesta, Barcelona cochila, o Semi-árido é estômago e espera.