app-icon

Baixe o nosso app Gazeta de Alagoas de graça!

Baixar
Nº 5861
Cidades

TRADIÇÃO UNIVERSAL, CEIA É LUXO PARA PARTE DOS ALAGOANOS

Da orla lagunar a semáforos, pessoas lutam para sobreviver em período marcado por ostentação e consumismo

Por luan oliveira | Edição do dia 25/12/2019 - Matéria atualizada em 25/12/2019 às 04h00

/Em semáforos da capital, crianças e adultos ainda tentavam conseguir dinheiro na véspera para a ceia da noite

Maria Lúcia estava sentada na porta com dois vizinhos quando foi abordada pela Gazeta ontem (24), véspera de Natal. Perguntada sobre a ceia, respondeu com certo desalento. "Pode entrar aí e ver se acha um quilo de farinha", disse, apontando para a porta de seu barraco às margens da lagoa.

A realidade de dona Lúcia é um retrato da vivência de muitos de seus vizinhos do Dique Estrada, comunidade humilde que carrega com orgulho traços de sua vida cotidiana, como a coleta de sururu e as missas no Papódromo. "Até ano passado, eu me sustentava catando sururu", contou Maria Márcia, mãe orgulhosa de 14 filhos e com 7 netos. "Estou me tratando de uma inflamação nos ossos. Não estou mais podendo trabalhar".

A filha, Rejane Silva, faz bico de manicure para complementar a renda. "Essa é minha filha, minha amiga, meu tudo", disse Márcia, se referindo a Rejane, única filha adulta que passará o Natal com ela. "O restante se debandou, cada um com sua família". "A gente compra uma cervejinha, senta aí na porta, é o que dá e é bom. Simples, mas juntos", falou Jane, enquanto tinha as cutículas da unha removidas pela colega.

Maria Lúcia também não vai passar o natal com seus filhos. "Tenho um neto chamado Felipe, meu orgulho. Concluiu os estudos, passou em advocacia na universidade pública", conta. "Mas meu Natal vai ser por aqui mesmo, a gente cozinha o que tem e come. O importante é estar junto".

Ela tinha a esperança de receber donativos como ocorreu ano passado. "Me deram R$ 100 e uma cesta de comida que serviu para a gente fazer uma celebraçãozinha", disse. "Até agora não surgiu ninguém por aqui, mas tenho esperança".

CORTE NATALINO

Alguns blocos à frente, jovens se aglomeravam em um pequeno sobrado na frente de uma travessa. Sentado, um deles recebia um trato no cabelo. "Já deve ser o décimo cabelo que eu mexo hoje", contou Wesley Santos, que sonha em ser cabeleireiro.

Uma criança perambulava pelo local com uma sacola plástica na cabeça, aguardando o descolorante fazer efeito. Mais duas foram vistas mais à frente, com o mesmo acessório. "Aqui a gente corta, descolore, pinta. Tudo de graça".

Wesley começou a fazer tratos nos cabelos dos vizinhos há cerca de uma semana, com o objetivo de aperfeiçoar a prática e, um dia, melhorar a condição de vida da família.

Josenilda Conceição, mãe de um dos meninos, assistia orgulhosa. "Às vezes, passa um pessoal por aí, catador, trabalhador mesmo. A gente chama e senta eles aqui, dá um jeito no cabelo, cuida da barba", conta, enquanto olha se o cabelo do filho está no ponto de tirar o descolorante.

NATAL NO SEMÁFORO

Ver crianças pedindo ajuda nos semáforos não é uma cena rara na capital, e na véspera de Natal não foi diferente. Vitória dos Santos, com 18 anos recém-completados, está no semáforo próximo à rodoviária todos os dias. “Está rendendo até agora. Estou aqui desde 10h da manhã, e vou embora depois que anoitecer”, conta.

Junto dela, estava um grupo de mais ou menos 15 pessoas, todos do Vale do Reginaldo e a maioria crianças entre cinco e nove anos. Eles se revezavam para pedir ajuda e limpar os vidros de carros que paravam no sinal. Manuela Silva, catadora de recicláveis e mãe de Vitória, disse que sua presença foi uma exceção.

“Só venho nos feriados, dar um suporte aos meus filhos. Quando não, estou catando recicláveis no Reginaldo ou cuidando da casa”, disse. Perguntada sobre a ceia, contou que a comemoração era incerta. “Não sei se vai dar para fazer”.

Edilaide Souza alternava entre cuidar do filho pequeno, ainda de colo, e entregá-lo para a filha mais velha para ir ela mesma no semáforo. Os menores não demonstravam irritação, parecendo acostumados.

Alguns minutos depois da chegada da reportagem, um carro parou em um posto de combustível próximo, repleto de produtos dentro. As pessoas foram chamadas e uma fila se formou após um momento inicial de tumulto. O motorista era Lucas Augusto, que com o pai e o irmão distribuiu presentes para moradores de rua.

“Pensamos em fazer antes, mas surgiram imprevistos e não deu. Depois que tudo se resolveu, decidi que iria fazer. Consegui arrecadar dinheiro na família e com vizinhos e reunimos essas coisas e começamos a distribuir”, contou. Eram bonecas, carrinhos de brinquedo, pacotes de pipoca e garrafas de refrigerante. As crianças saíram felizes com seus brinquedos e lanches, mas ainda era incerto se podiam contar com uma ceia de Natal.

* Sob supervisão da editoria de Cidades.

Mais matérias
desta edição