Cidades
Naufr�gio e morte de bispo geram pol�mica

VALMIR CALHEIROS A História brasileira pode estar sendo ensinada de forma errada nos estabelecimentos de ensino espalhados pelo País, sobre um dos episódios que, de acordo com a maioria dos historiadores, não só brasileiros e mais antigos, realmente aconteceu, teve como palco o litoral da parte sul de Alagoas e deu motivo a uma lenda contada até hoje. Principalmente aos turistas. O erro estaria na parte referente ao naufrágio da nau Nossa Senhora da Ajuda ocorrido 56 anos após o Descobrimento do Brasil, e cujos sobreviventes - o primeiro bispo do Brasil, Dom Pedro Fernandes Sardinha e mais de 80 pessoas, incluindo mulheres e crianças, teriam sido mortos e devorados pelos índios Caetés da nação Tupi, que viviam na região. Em 16 de junho, serão completados 448 anos dessas duas ocorrências que talvez não fossem relembradas agora, caso um historiador alagoano, Moacyr Soares Pereira, falecido em 2001, não surgisse com uma nova versão indicando o litoral do Estado de Sergipe como o lugar do mesmo naufrágio e como antropófagos e devoradores do bispo Sardinha e seus companheiros de viagem, os Tupinambás, ali estabelecidos e inimigos dos Caetés. A teoria do citado historiador inocenta os Caetés que, devido ao banquete antropofágico, terminaram exterminados e tiveram seus descendentes, sem exceção de sexo e idade, condenados à perpétua escravidão, e à sombra deles as demais nações indígenas, pelos portugueses sedentos de vingança, conforme lembra Douglas Apratto Tenório, escritor e também historiador. Nesta reportagem, veremos que há historiadores em dúvidas até quanto à existência dos Caetés, se o referido naufrágio realmente aconteceu e houve ou não ritual de antropofagia. E já tem cidade alagoana disposta a inaugurar, ainda este ano, um monumento a Dom Pedro Fernandes Sardinha. Justamente onde ele teria vivido seus últimos dias. Encontramos a versão de Moacyr Pereira no trabalho de sua autoria Naufrágio e morte de D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil: sua revisão histórica, publicado em 1996, em separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e na sua mais recente obra Índios Tupi-Guarani na Pré-História suas invasões do Brasil e do Paraguai, seu destino após o Descobrimento, publicada pela Editora da Universidade Federal de Alagoas (Edufal). Outra história Moacyr Pereira mostra uma história contrária a de outros estudiosos, a partir da narrativa de Gabriel Soares de Sousa, no Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, de que o bispo Sardinha e acompanhantes - um provedor-mor, dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos - com sua nau vinda da Bahia, de onde partiu em 15 de junho de 1556, para Lisboa, se perderam, no dia seguinte, nos baixios de Dom Rodrigo (nas águas localizadas entre Barra de São Miguel e Coruripe). O bispo estava entre os náufragos que terminaram mortos e comidos pelos Caetés, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba; depois que estes Caetés roubaram este bispo e toda esta ente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom-recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua... Outras fontes Moacyr Pereira observa que Gabriel Soares chegou ao Brasil 11 anos após o naufrágio do bispo Sardinha e não estava no Brasil, portanto, quando isso ocorrera. Conseqüentemente, tivera de colher dados relativos ao acontecimento de terceiros (índios mais antigos, de acordo com ele próprio). Ao mesmo tempo, o historiador informa a existência de pelo menos três cartas de jesuítas, além de um livro de um quarto padre da Companhia de Jesus, sempre muito bem informado no que aconteciam na terra dos brasis, contendo referências elucidativas sobre aquela tragédia marítima. Com base em tais escritos, sobretudo no dado constante de uma dessas cartas, a de um padre castelhano, datada de apenas um ano depois do naufrágio e dirigida a Inácio de Loyola, que afirma, pela primeira vez, ter a nau em que ia o bispo se perdido a sessenta léguas da cidade de São Salvador, e repete na segunda, o naufrágio foi em Sergipe, houve o morticínio, e escaparam dez pessoas e não três, como escrevera Gabriel Soares. Moacyr Pereira reforça a sua teoria de que a nau Nossa Senhora da Ajuda perdeu-se na costa de Sergipe, próxima do Rio São Francisco, na então chamada Enseada Vaza-barris, e não em Coruripe, e o bispo com seus companheiros de viagem foram devorados pelos índios locais, Tupinambás, que viviam na margem direita do São Francisco, e não os Caetés, seus inimigos, que sempre ocuparam a margem esquerda deste rio, no atual Estado de Alagoas. Fraude histórica A propósito, Moacyr Pereira deixou registrada no trabalho publicado pelo IGHB esta observação: Se não houve por parte daqueles que entenderam ter sido no litoral de Alagoas o afundamento da nave em que viajava o bispo Sardinha, e lançaram sobre os ombros dos Caetés a culpa de sua morte bárbara - uma inexplicável confusão e desconhecimento geográfico da região san-franciscana e da exata localização das tribos que a senhoreavam: - então estaremos diante de uma fraude histórica, aproveitando-se da morte do bispo para o aniquilamento da mais poderosa nação Tupi do Nordeste brasileiro e apropriar-se de seus despojos materiais e humanos, como acabou acontecendo pouco tempo depois.