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Fome e solid�o na luta pela sobreviv�ncia

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FERNANDO COELHO Todas as noites, há pelo menos cinco meses, o monumento gradeado em frente à Assembléia Legislativa se transforma numa espécie de berçário. Nele, o lavrador José Antônio da Silva, 42 anos, acoberta e nina os quatro filhos sob sua proteção. São três meninas e um garoto entre três e sete anos de idade. Uma história que se confunde entre o drama familiar e a determinação de um pai em preservar sua prole imune aos riscos das ruas. Natural de Cajueiro, José Antônio veio para a capital porque a mulher abandonava os filhos quando ele saía para trabalhar na lavoura de cana-de-açúcar. “Ela chegou a dar as crianças ao povo. Batalhei, tomei eles de volta e vim para cá em busca de uma vida melhor, para tentar criá-los aqui e não entregá-los a ninguém”, relata. Na chegada a Maceió, o território demarcado para o descanso foi o mirante de São Gonçalo, no Farol, onde a família passa todo o dia. Somente no cair da noite eles descem para a Praça Dom Pedro II. A rotina só é quebrada quando resolvem ir de trem a Rio Largo. “Lá tem um rio onde eu lavo as roupinhas deles, coloco para secar e no final da tarde a gente volta”, diz. José Antônio garante que o sustento não vem da mendicância. “Eu não peço e nem ensino eles a pedir. É o povo quem ajuda, e o que aparece a gente come”. Autêntico exemplo de bom pai, ele nunca estudou, mas diz que pega qualquer serviço para sair da miséria. “Só quero um emprego, mas bem que se eu tivesse oportunidade e uma casa, eu voltava para Cajueiro”, confessa. Mesmo em meio a tanto sofrimento, Antônio ainda foi pego por uma peça do destino na última semana. “Fui roubado aqui no Centro. Levaram minha bolsa grande com tudo: nossas roupas, documentos e carteira. Não sobrou nada”, lamenta. Para compensar, no dia seguinte, o sem-teto ganhou 20 reais e não pensou duas vezes: comprou roupas novas para as crianças. “Foram só vinte reais, mas eles ficaram tão felizes com as roupas... Eu zelo mais do que a mãe e nunca deixo eles sozinhos. Aqui tem muito cheira-cola. Não quero eles andando com esse povo”, frisa. Latinhas No calçadão do Centro, o número de pessoas largadas na porta das lojas varia de noite para noite. A cena chocante não impressiona mais o policial de plantão no PM-Box local. Ele diz que nos períodos de festa – principalmente na Páscoa e no Natal – a população de miseráveis aumenta. Um dos “moradores” das ruas do comércio é Ernani Oliveira, 64 anos. Paraibano, ele vive da venda de latinhas de alumínio e dorme há dois anos na Rua Senador Mendonça, em frente à Igreja do Livramento. Ernani é casado mas não tem filhos. Visitas para a mulher – que mora com o pai em um casebre no Tabuleiro do Pinto – só de 15 em 15 dias. “Não posso ir sempre, senão eu não arrumo as latinhas”, explica. Antes da pobreza extrema, ele diz ter trabalhado como agricultor nos Estados de Mato Grosso, Goiás, Pará, Paraíba e Rio Grande do Norte. “Já tive emprego e casa. Nunca imaginei chegar aos 64 anos numa situação como essa”, confessa o ex-plantador de milho e feijão. A rotina do maior abandonado começa às 5h da manhã, com o banho de mar. Em seguida, toma o rumo da praia de Jatiúca, onde coleta latinhas. “Ganho R$ 3,60 por cada quilo de lata”. O pôr-do-sol anuncia a hora de voltar para o Centro e esperar pela sopa distribuída por entidades espíritas. Diferente de seus companheiros de sarjeta, Ernani não bebe, não fuma e não gosta “de andar com mais ninguém”. Como poucos, encara sóbrio e solitário as amarguras da indigência humana. Na Praça dos Martírios, bem em frente ao Palácio do Governo, vivem cerca de 30 pessoas. A maioria, garotos desregrados e dopados pela inebriante essência dos tubos de cola. Jovens pais de família que guiam os filhos pelos mesmos trilhos da marginalidade social. Nos relatos, a degradação familiar surge como principal motivo para o abandono do lar e a errante conquista da vida nas ruas. Martírios Roberto da Silva, 18 anos, é órfão de pai. A mãe também perambula pelas ruas. Há dois anos sem residência fixa, o jovem, que já foi músico de banda marcial, mora há cinco meses na Praça dos Martírios com o irmão, a esposa e dois filhos. “Eu já tive uma casinha, mas não tive como pagar o aluguel”, diz. Antes de montar barraca na praça, as praias de Pajuçara e Avenida já serviram de morada. “Não tenho estudo, mas sei fazer vassoura. Se eu tivesse um serviço, saía da rua”, afirma. Ao seu lado, R.S., 14 anos, segura a filha de um ano e três meses. Ela revela que fugiu de casa, em Aracaju, quando tinha apenas 10 anos e desde então a rua é seu lar. A fonte de renda vem dos programas com “os coroas”. Segundo relata, certa vez, com uma amiga, levou um tiro de um cliente. “Minha sorte é que foi de raspão, no braço. Minha amiga não teve a mesma sorte e morreu. Só me salvei porque abri a porta do carro e saí correndo”. Seu sonho é sair das ruas e “dessa vida de drogas”. A rotina dos desabrigados começa às cinco da manhã, com os primeiros raios do sol. Eles saem para procurar comida, água e dinheiro. Logo após as 18 horas, retornam para esperar café e sopa distribuídos por entidades cristãs e espíritas. Demonstrando solidariedade, novos inquilinos são permitidos. A única regra é não trazer “menino pequeno, porque dá muito trabalho”, diz Roberto. Olhando o mar Mesmo aos 40 anos, Edivaldo José tem jeito de trabalhador robusto delineado pela musculatura magra, porém, bem definida. O currículo comprova: “Já cortei cana, limpei máquina pesada e dei duro na construção civil, mas, o dinheiro que juntei não deu para comprar um barraquinho sequer”, confidencia. Natural de União dos Palmares, ele veio para Maceió em meados dos anos 80. Há dois anos sem teto, ele mora, desde o ano passado, sob uma lona fixada com paus e pedras em um terreno baldio na Avenida da Paz. O trocado vem no fim da semana quando vende papelão e ferro-velho, ou nos “bicos” da construção civil. “Às vezes, o pessoal que mora no prédio vizinho me dá uma cesta básica e roupas usadas”. Enquanto o fogo improvisado esquenta a lata com a água para o café, Edivaldo confessa: “A solidão é grande por aqui. Quando quero relaxar, vou para a praia e fico olhando o mar”. A mulher e os quatro filhos continuam em União dos Palmares e só são vistos, a cada seis meses, quando ele junta dinheiro suficiente para a viagem. “Eu não espero mais nada dessa vida, mas ainda sonho com meu barraco. Não quero envelhecer na rua”.

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