Cidades
Serra da Barriga: interesses e conflitos

LELO MACENA Repórter O governo federal, o governo do Estado, a Prefeitura de União dos Palmares e a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) têm um desafio pela frente: combinar preservação e desenvolvimento na Serra da Barriga, um dos mais valiosos sítios históricos do Brasil, situado na zona da mata alagoana, palco de um dos maiores movimentos sociais na história do País. Um grandioso projeto está em andamento, mas ainda cercado por uma série de questões que envolvem burocracia, posições conflitantes e interesses políticos e financeiros. Pesquisadores avançam sobre o passado da Serra da Barriga e denunciam as agressões que ao longo do tempo arrasaram uma boa parte da história negra na serra, enquanto os governos anunciam que ali será erguido um grande pólo de turismo. A Serra da Barriga hoje não é apenas o mais importante símbolo da resistência negra no Brasil, como sempre afirmaram os movimentos afro-descendentes. O local, situado no município de União dos Palmares, a 80 quilômetros de Maceió, é considerado também o principal sítio arqueológico do País, capaz de redimensionar a história do povo africano no Brasil e nas Américas. Agressão ao patrimônio Mas desde 1986, quando foi tombada, a Serra da Barriga vem sendo alvo de constantes agressões, verdadeiros crimes contra o patrimônio histórico. Somente para citar um deles - talvez o mais grave - em 1995, durante as comemorações dos 300 anos da morte de Zumbi, uma motoniveladora da Prefeitura de União dos Palmares subiu a serra e, com o objetivo de fazer um campo de pouso para o helicóptero presidencial, praticamente destruiu a camada do solo onde se encontravam os vestígios do quilombo. O fato foi considerado ?o maior crime contra a história negra no continente americano?, segundo o arqueólogo da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Zanettini, um dos que participaram das primeiras pesquisas, no começo da década de 90. As atividades do 20 de novembro e os vários projetos temporários idealizados pelos governos para o local também são responsáveis por perturbações graves sofridas pelo sítio histórico. Arqueologia A Serra da Barriga é objeto de pesquisas arqueológicas desde 1992, quando tiveram início as primeiras escavações feitas pelo professor americano Charles Orser, da Universidade de Ilinois, e pelo professor da Unicamp Pedro Paulo Funari. Nos anos de 92 e 93, quando a pesquisa foi realizada, cerca de 2.500 peças - a maioria cacos de cerâmica - foram colhidas na área explorada pelas equipes dos dois pesquisadores daquela época. Atualmente, o responsável pelos estudos é o arqueólogo americano, radicado no Brasil há cerca de uma década, Scott Allen, 43, doutor em Antropologia pela Brown University, nos Estados Unidos. É ele quem responde pelo sítio arqueológico da Serra da Barriga e, desde 96, vem realizando trabalhos sistemáticos com o objetivo de desvendar o cotidiano dos palmarinos. Além disso, os trabalhos servem ainda como orientação de alunos de graduação em técnicas de campo e arqueologia pública. A pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da UFAL (Nepa) também tem o apoio do CNPQ e da Prefeitura de União dos Palmares. A Gazeta esteve em União dos Palmares e subiu os mais de 500 metros da serra para acompanhar um dia de trabalho da equipe do professor Scott Allen. ### Governos federal e municipal divergem O interesse arqueológico está longe de ser o único a predominar na Serra da Barriga. Desde a data de seu tombamento, governos, movimento negro e outros movimentos sociais usam o local como símbolo para suas causas. A história de Zumbi se transformou numa espécie de estandarte das lutas sociais, enquanto a preservação e o estudo sistemático do sítio histórico sempre ficaram relegados a segundo plano. A prefeitura de União dos Palmares reclama que sempre esteve de fora de todos os projetos realizados na Serra da Barriga. ?A Fundação Cultural Palmares empurra tudo goela abaixo. Nós somos sempre os últimos a saber dos projetos realizados na serra?, reclama o vice-prefeito de União, Areski Freitas, o Kil. Segundo ele, o município já tentou de todas as maneiras uma parceria com a Fundação e nunca recebeu resposta. ?No começo do ano nós fizemos a proposta de cooperação técnica e até hoje não recebemos nenhuma resposta?, afirma ele. A Fundação Cultural Palmares, orgão federal criado em 1988 e responsável pelos 248 hectares do sítio histórico da Serra da Barriga se defende. ?Não fizemos isso por absoluta falta de recursos?, argumenta Zulu Araújo, diretor de estudos e pesquisas da instituição. ?Nós tivemos 57% de nossa verba cortada?, diz ele, em entrevista por telefone à Gazeta. Segundo Zulu, a Fundação Cultural Palmares gasta por ano na serra cerca de R$ 120 mil. A maior parte desse dinheiro é para a manutenção do posto de observação da Serra da Barriga e pagamento dos quatro agentes florestais responsáveis pela vigilância do sítio histórico. Quanto às agressões sofridas pelo sítio arqueológico, ele diz ?desconhecer completamente? o fato e que ?o professor Scott deve repassar as informações à fundação, para que as providências sejam tomadas?. Zulu discorda do arqueólogo também quanto ao motivo da suspensão da pesquisa em 97. Para ele, o problema foi mesmo a falta de verbas e não a censura dos trabalhos por causa dos vestígios indígenas encontrados. Quanto a novos investimentos na Serra da Barriga, ele adianta: ?Agora mesmo estou aqui com o mais novo projeto da Serra da Barriga?, diz Zulu, já adiantando a mais nova investida do governo de Alagoas no patrimônio histórico dos Palmares e confirmando que o próximo dia 20 de novembro deve marcar o início das obras. ?Nesse novo projeto pretendemos trabalhar em conjunto tanto com o governo de Alagoas quanto com a Prefeitura de União dos Palmares?, afirma, destacando alguns dos objetivos do projeto, que deve ser oficializado na terça-feira, dia 6, quando o governador Ronaldo Lessa deve receber no Palácio dos Martírios o presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro. O novo projeto do qual fala Zulu Araújo é mais uma tentativa de resgate da história do Quilombo dos Palmares. Só que dessa vez os idealizadores querem evitar que a investida não fique pelo meio do caminho, como tantas outras que só consumiram dinheiro público e não tiveram continuidade. ?Dessa vez, nós temos três objetivos, que são recontar a história do Quilombo dos Palmares, criar uma demanda turística na serra e gerar renda para o município de União dos Palmares?, explica Zezito Araújo, da Secretaria de Defesa e Proteção das Minorias (Sedem) e um dos idealizadores do Memorial Quilombo dos Palmares - Serra da Barriga. Ele reconhece o atraso com que chega um projeto desse porte, mas acredita que a partir dessa iniciativa a Serra da Barriga deva receber os cuidados e a atenção que merece. Zezito ainda não se arrisca a falar de valores, pois alguns orçamentos, a exemplo do projeto arquitetônico, ainda não foram repassados. Segundo ele, o projeto contempla ainda o calçamento da via de acesso à serra, já que nos meses de inverno fica praticamente impossível a subida ao local. LM ### Estado reconhece agressões ao sítio O secretário de Defesa das Minorias, Zezito Araújo, reconhece que vários projetos realizados anteriormente causaram perturbações no sítio arqueológico. ?Realmente, alguns projetos feitos no passado, sem o devido acompanhamento, trouxeram prejuízos ao sítio?, diz Zezito. Porém ressalta que dessa vez os trabalhos terão o acompanhamento do arqueólogo responsável, no caso o professor Scott Allen, até porque é uma exigência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pela fiscalização do sítio histórico. Apesar do cuidado e de algumas restrições quanto ao novo projeto, o arqueólogo Scott Allen e suas pesquisas serão contemplados, segundo Zezito Araújo. Os espaços físicos destinados aos estudos arqueológicos correspondem a 25% da planta do novo projeto. Duas salas abertas vão abrigar o local de processamento de materiais e de exposição dos artefatos encontrados. O público deve participar de atividades arqueológicas de campo. Na terça-feira passada, dia 30 de agosto, a superintendente do Iphan em Alagoas, Lousane Leão, esteve na Serra da Barriga a convite do pesquisador Scott Allen. ?Foi uma visita para nós nos inteirarmos das pesquisas que estão sendo feitas, pois precisávamos saber quais os resultados que ele está obtendo?, explica. Segundo ela, a visita serviu também para uma avaliação in loco a respeito da localização do museu que será construído. ?A idéia do projeto é muito interessante. Acho que um museu lá em cima será perfeito, até para a exposição dos artefatos que já foram encontrados nas escavações. O problema é nós discutirmos de que maneira isso vai ser feito?, diz ela, que já recebeu o projeto, mas ainda não tem um parecer. ?Ainda não defini nada. O governo já enviou o projeto ao Iphan, mas ainda tenho de trinta a quarenta dia para me posicionar?, afirma Lousane Leão. ?Nós também temos que entender que não é apenas o sítio arqueológico que deve ser preservado. O sítio paisagístico vai precisar de um reflorestamento?, afirma ela, que está em Maceió desde junho deste ano. Lousane Leão não quis tecer comentários sobre as agressões sofridas pelo sítio no passado, mas garantiu que a partir de agora o patrimônio histórico da Serra da Barriga deve receber atenção especial por parte do Iphan. Outro problema a ser resolvido é a situação dos moradores da Serra da Barriga que vivem dentro dos limites do sítio histórico. O Incra já começou a fazer os levantamentos e cadastrar as famílias. Segundo Katiucia Mendes, representante do Incra, o órgão ainda não tem um número exato de famílias que vivem no local. ?Ainda estamos no começo dos trabalhos. A intenção não é de retirar essas pessoas de lá, até porque existe a possibilidade de todos permanecerem onde estão?, afirmou. LM ### Arqueologia e índios na serra de Zumbi Dentre os artefatos encontrados nas escavações da equipe de Scott Allen, os que mais chamam a atenção são as urnas funerárias indígenas. Ao todo, quatro urnas foram achadas durante as pesquisas. A primeira urna foi descoberta pelos pioneiros das escavações na serra, os professores Charles Orser e Paulo Funari, em 1992. Junto a ela estavam dois machados - um polido e outro picoteado - que não apresentavam marcas de uso. Essa urna apareceu apenas 15 centímetros abaixo da superfície, o que mostra o quanto estão à ?flor da terra? os vestígios da vida palmarina, daí a necessidade de um controle mais efetivo com a finalidade de preservar o local. A segunda urna também foi achada no platô principal da Serra da Barriga. O artefato media 80 centímetros de altura por 80 centímetros de bojo e continha, ainda, fragmentos de cerâmica e um dente humano. A terceira urna foi achada na estrada de acesso ao platô. A quarta urna foi encontrada durante uma sondagem feita pela equipe do professor Scott Allen e foi a única que estava em área não atingida pelo trator de nivelamento. Vale ressaltar que outras urnas já foram encontradas por moradores da serra, enquanto roçavam suas lavouras, outra atividade cotidiana da Serra da Barriga que também põe em risco os estudos arqueológicos naquele local. Segundo relatos, também foram encontrados material ósseo (dentes e mandíbula) e mobiliário fúnebre (colares e cachimbo). Segundo Scott Allen, tudo leva a crer que as urnas encontradas são da tradição Aratu, um termo usado pelos arqueólogos para dividir em categorias os tipos de cerâmica produzidos pelos grupos indígenas pré-coloniais, cerca de 600 mil anos atrás. Para ele, as urnas encontradas não se diferenciam das demais achadas nos vários sítios arqueológicos do Nordeste. Mesmo reconhecendo que as constantes visitas de curiosos à serra, as comemorações do dia 20 de novembro e projetos de governos que não tiveram continuidade causaram perturbações no sítio arqueológico, o professor Scott Allen acha que a Serra da Barriga deve gerar renda para o município. Para ele, a exploração turística deve ser feita de forma responsável, já que se trata não apenas de um sítio arqueológico, mas também histórico, etnográfico e paisagístico. Para o pesquisador, os estudos que estão sendo feitos vão permitir que se reescreva a história do Quilombo dos Palmares a partir do ponto de vista dos palmarinos. ?Não podemos descartar a história oficial sobre Palmares, mas temos de saber que foi uma história escrita pelo colonizador?, diz ele, afirmando que a Arqueologia tem instrumentos para desenterrar a história que está escrita no ?chão? da Serra da Barriga. De acordo com a história oficial, o Quilombo dos Palmares começou a se formar em 1630, no período da economia canavieira e de lutas contra os holandeses. Chegou a ter uma população de cerca de 30 mil pessoas. Palmares resistiu a pelo menos 17 tentativas de destruição promovidas pela coroa portuguesa. Os quilombolas cultivavam enormes roças, onde todos trabalhavam e a pecuária também fazia parte das atividades. O Quilombo dos Palmares foi exterminado em fevereiro de 1694 e o último refúgio de Zumbi e seus guerreiros foi a Serra da Barriga. Em novembro, o professor Scott Allen viaja para os Estados Unidos, onde deve proferir palestra no encontro anual da American Antropological Assossiation. Lá ele vai falar de suas recentes descobertas, além de afirmar o multivocalismo da Serra da Barriga, ?um lugar que fala não apenas pelos negros, mas pelos índios e por todas as vozes dos excluídos.? |LM