RISCO À SAÚDE
Por trás de toneladas de entulhos: a dor invisível de quem acumula
Casos podem refletir histórias de perdas, traumas, depressão e outros transtornos, avalia psicóloga


O acúmulo excessivo de objetos sem valor ou utilidade pode ser diagnosticado como transtorno mental. O problema traz sérias complicações à saúde de quem vive nessa condição e também pode afetar os vizinhos — como já ocorreu em Maceió. Só este ano, a Vigilância Sanitária recolheu cerca de 17 toneladas de entulhos em quatro residências localizadas nos bairros Santo Amaro, Santa Lúcia, São Jorge e Santa Amélia, na parte alta da capital.
Esses casos chamam atenção para o que a psicologia define como Transtorno de Acumulação. Nas residências, as equipes encontraram ambientes inseguros e insalubres, marcados pelo excesso de entulhos e riscos sanitários diversos, como a proliferação de insetos, roedores e escorpiões.
“Essa quantidade de 17 toneladas foi encontrada dentro de casas ou em terrenos anexos às residências de acumuladores. É um trabalho contínuo, feito em nome da saúde sanitária de todos”, destaca o chefe especial da Vigilância Sanitária (Visa), Airton Santos. Na última terça-feira (8), por exemplo, após denúncia de moradores, a Autarquia de Desenvolvimento Sustentável e Limpeza Urbana (Alurb) e a Visa recolheram 10 toneladas de entulho em residências do bairro Santa Lúcia.
Em outro episódio, no dia 7 de julho, duas toneladas de lixo foram removidas da casa de um homem de 40 anos, que morava sozinho em Santa Amélia. Segundo as equipes, o local estava infestado de ratos, baratas e escorpiões, em condições completamente insalubres. “Era impossível imaginar alguém vivendo ali”, relataram os agentes.
A cena era de completo caos: equipamentos eletrônicos inutilizados, colchões sujos, tijolos, cadeiras presas à parede e todo tipo de utensílio acumulado.
Já no dia 9 de junho, uma ação conjunta entre a Alurb e a Secretaria Municipal de Segurança Cidadã (Semsc) retirou cerca de quatro toneladas de lixo de uma casa no bairro Santa Lúcia, após denúncia anônima feita à prefeitura.
“Os imóveis tinham características de abandono, com muita insalubridade, paredes mofadas e presença de insetos peçonhentos e roedores. É uma situação anormal, que coloca em risco a vida dos próprios acumuladores e de seus vizinhos”, alerta Airton Santos.

Transtorno reconhecido
A psicóloga Amanda Santos explica que a acumulação compulsiva é um transtorno mental reconhecido pelo DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), classificado entre os transtornos obsessivo-compulsivos e relacionados. Ele se caracteriza pela dificuldade persistente de descartar ou se desfazer de objetos, independentemente de seu valor.
“As pessoas com esse transtorno sentem uma angústia intensa ao pensar em se desfazer de qualquer item. Muitas vezes, acreditam que aquilo ‘pode ser útil no futuro’ ou sentem um apego emocional excessivo a objetos aparentemente sem valor, como jornais velhos, embalagens vazias ou roupas rasgadas”, explica.
Com o tempo, esse comportamento resulta no acúmulo desorganizado de objetos que ocupam espaços essenciais da casa — como camas, fogões e banheiros —, comprometendo o convívio social, a segurança e a saúde do indivíduo e da comunidade.
Dor silenciosa
“Em Maceió, temos observado casos frequentes de acumuladores em diferentes bairros, geralmente identificados pela Vigilância Sanitária ou por denúncias da vizinhança. Esses episódios ganham visibilidade quando oferecem riscos à saúde pública, como proliferação de insetos, odores fortes ou risco de incêndio. Mas isso é apenas a ponta do iceberg”, avalia Amanda Santos.
Segundo a psicóloga, esses comportamentos refletem dores profundas e silenciosas. Em sua prática clínica, é comum observar, por trás do acúmulo, histórias marcadas por perdas, traumas, depressão, ansiedade e isolamento social.
“Muitas vezes, são pessoas sem rede de apoio, e o acúmulo torna-se uma tentativa de preencher vazios emocionais. A comunidade pode e deve agir, mas com responsabilidade e acolhimento”, afirma Amanda.
Cuidados e acolhimento
Diante de sinais de acumulação, o ideal é evitar confrontos ou invasões de espaço, que podem gerar ainda mais resistência. A recomendação é buscar diálogo com a família, quando possível, e acionar órgãos públicos, como a assistência social e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que podem oferecer acompanhamento psicológico e abordagem multidisciplinar.
A psicóloga ressalta que a simples retirada do lixo, embora melhore temporariamente o ambiente, não trata a causa do problema. “Em muitos casos, a limpeza forçada pode provocar traumas, sensação de perda e até intensificar o comportamento, numa tentativa de ‘reconstruir o que foi tirado’.”
“É fundamental acolher a pessoa por trás do acúmulo antes de qualquer intervenção. Sem acompanhamento terapêutico, a reincidência é altíssima”, reforça Amanda.
Além do Transtorno de Acumulação Compulsiva, é comum que esses pacientes apresentem comorbidades, como Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), Transtorno Depressivo Maior e Transtornos de Ansiedade Generalizada.
De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), quando há confirmação de transtorno mental nos atendimentos a acumuladores, a prefeitura encaminha os casos para as equipes de Saúde Mental, que fazem a abordagem e tentam viabilizar atendimento nos CAPS.