Cidades
Sergipe despeja toneladas de sururu em AL

Nossa Senhora do Socorro, SE ? Este ano Alagoas deixou de ser a terra do sururu. Pode parecer absurdo, mas o status foi perdido para Sergipe, que não tem lagoas e fornece cerca de cinco toneladas por mês para Maceió. Há oito meses, esta fonte de renda e símbolo de identidade cultural desapareceu totalmente da Lagoa Mundaú. As marisqueiras do Mercado da Produção confirmam que só estão vendendo o marisco importado do Estado vizinho. Com a escassez da oferta, o preço para o consumidor saltou de R$ 3 para até R$ 9 o quilo. O fenômeno que aumenta a miséria em Maceió gera fartura no povoado de Taiçoca de Fora, distante cinco quilômetros de Aracaju. Os pescadores do Rio Cajaíba responder por 90% da oferta sergipana do molusco. A chegada dos compradores alagoanos é motivo de festa porque o taiçoquense vendia o sururu por R$ 1 ou R$ 1,50 e agora recebe até R$ 4,50 pelo quilo. ### Espécie precisa de água salobra A areia e sedimentos sólidos são arrastados para a Boca da Barra e dificultam o tradicional movimento das marés com a entrada da água salgada pela foz e pelos canais. Como dizem os velhos pescadores, ?o pai-oceano não penetra mais com tanta facilidade na mãe-lagoa?. Por este raciocínio, o sururu pode ser considerado o sêmen que multiplica a vida na lama, na água e em todo o entorno da Mundaú. É o alimento que atrai os peixes, o ouro que gera renda para o povo. Mas o molusco precisa da água salobra para sobreviver e a dessalinização não pára de aumentar. Entre os habitantes da orla lagunar, é comum ouvir que o sururu morreu porque o inverno foi forte. A afirmação tem algum sentido porque as chuvas intensas tornam a água mais doce, mas pouco tempo atrás o sururu nascia o ano inteiro. Quando começou a ficar escasso, era por apenas um ou dois meses, e não quase um ano inteiro. ### Para o catador de sururu a escassez do molusco preocupa Considerado o ouro a ser garimpado pelo pescador ou o petróleo da lagoa, o marisco gera emprego e renda para qualquer pessoa que se disponha a atolar o pé na lama, remar uma canoa, mergulhar, despinicar, vender na feira ou colocar uma bacia na cabeça e sair gritando ?sururuuuu freeesco!?. Sua riqueza é contada em verso e prosa, que o diga o trecho da marcha-frevo Sururu da Nêga: ?Em Bebedouro, no Farol, na Ponta Grossa/ Com o sururu da nêga a folia é nossa/ Não há petróleo, não há porto, não há nada/ O bom problema é o sururu lá da Levada/ É da favela não, nega Juju/ Nasceu num rancho na terra do sururu?. Enquanto espera a volta do molusco, os catadores e marisqueiras são obrigados a mudar de ofício para não morrer de fome. Alguns deles se arriscam na construção civil, mas, sem preparo técnico, só conseguem bicos como ajudante de servente de pedreiro ou coisa que o valha. Elas se desdobram em faxinas e qualquer serviço que apareça. ### Porto lembra o Dique Estrada Nossa Senhora do Socorro, SE ? O porto da barreira em Taiçoca de Fora, município de Nossa Senhora do Socorro, lembra os bons tempos do antigo porto do sururu no Dique Estrada, em Maceió. É um congestionamento de canoas que atracam a cada instante para descarregar o produto retirado debaixo d?água. A algazarra dos mergulhadores só não é maior que a negociação com os canoeiros, carroceiros, marisqueiras e cambistas (os atravessadores). Todo mundo lucra. A primeira impressão é a mesma, guardadas as devidas proporções entre o estreito Rio Cajaíba e a Lagoa Mundaú. Mas o cenário ao redor é outro. A água é cristalina, o mangue está intacto, não se vê esgoto nem lixo. A comunidade não é rica, alguns ainda moram em casa de taipa, mas nada igual à miséria das favelas. Crianças e adolescentes nunca ouviram falar em crack e só vêem armas nos filmes que passam na TV. Ao invés do barulho dos carros, o sopro do vento Nordeste. Até o cheiro da lama é diferente, puro, sem poluição. ### Pescadores enfrentam desafios Se na lagoa Mundaú muita gente tem o privilégio de catar o sururu bem próximo à margem, apenas se agachando no raso, na Taiçoca de Fora o trabalho é mais árduo. O pescador sai do porto pelo Rio Cajaíba, segue de canoa pelo Cotinguiba e rema cerca de uma hora e meia até chegar ao trecho do Rio Sergipe, próximo à cidade de Santo Amaro. Na canoa a motor com a equipe da Gazeta, seu Zé Linheiro, Luiz Barreto e Manoel Messias explicam que este é um dos trechos mais próximos. ?Quando acaba o sutinga daqui, a gente segue para o Rio Pomonga ou vai até o Parnamirin, são quatro horas de motor para chegar lá?, informa Zé Linheiro. Saindo de madrugada, o pescador só volta à noitinha. ### Pescadores alagoanos vão para Sergipe A falta de sururu na lagoa leva não só compradores alagoanos para Sergipe. É cada vez maior a quantidade de pescadores que se aventuram nos estuários (rios e canais de água salgada). O comerciante Perón Farias vai três vezes por semana à Taiçoca e já trouxe numa viagem até uma tonelada de sururu pronto para a venda. Perón importa matéria-prima e exporta mão-de-obra. ?Já levei 28 alagoanos para lá só este ano, mas é preciso trabalhar direito para evitar problemas?, alerta o comerciante, deixando claro que só leva o sururu descascado. Os alagoanos retiram o molusco do rio, mas também geram renda para a comunidade local, seja no transporte de carroça, no aluguel da canoa e, principalmente, no trabalho de retirada da casca. ### Sutinga é garantia de renda Ana Carla Viana e a cunhada Daiane dos Santos, 16 anos, produzem cerca de quatro latas de sururu por dia, o equivalente a oito quilos do produto. ?Pode dizer aos alagoanos que venham comprar o nosso sutinga da Taiçoca, que aqui não falta não, graças a Deus?, afirma Maria do Rosário. Segundo o presidente da associação, seu Zé Linheiro, mais de 90% da população da Taiçoca de Fora tem o marisco como fonte de renda. Em quase todas as casas da vila, é comum ver famílias inteiras separando o sururu da casca. É assim na varanda da casa de dona Valdinete dos Santos, que já utiliza a técnica importada de Alagoas. ?Para peneirar, a gente não coloca água na lata e tem que desencaixotar (retirar o umbigo do sururu que fica fora da casca), coloca no fogo pouquinho tempo, uns dez minutos, e peneira ele quente. Sai tudinho da casca?, explica Valdinete. ### Toneladas de areia entopem canais de lagoas ?Cada uma das lagoas é como um coração a contrair-se na sístole da vazante e a dilatar-se na diástole da enchente. Os rios fazem o papel de veias, isto é, de vasos que levam o sangue ao coração. Os canais são como artérias a conduzir e a dispersar a água das lagoas pelo corpo do oceano.? Nada melhor do que o lirismo desta metáfora do ambientalista Octávio Brandão para alertar sobre a moléstia do assoreamento. Se vivo estivesse, o escritor alagoano poderia registrar que as lagoas agonizam em constantes anginas. Com o corte das matas e mangues, o escoamento da areia entope as ?veias e artérias? e o coração está à beira do enfarto. Uma angioplastia se faz urgente. ### Mundaú separada da Manguaba O encontro das lagoas na Boca da Barra não existe mais. A grande quantidade de areia acumulada pelo assoreamento bloqueou a principal ligação entre a Mundaú e a Manguaba. O Canal de Fora pode ser visto como os braços das duas lagoas, mas o milenar abraço entre elas está interrompido há algumas semanas. Por enquanto, cada lagoa tem a sua foz. Para navegar de uma à outra, só contornando pelo mar. Elas gritam ao oceano pela Boca da Barra, mas os canais estão sufocados, são gargantas entupidas pela erosão. Do Pontal à Prainha, as crôas surgem como espinhas nessa nova face da lagoa Mundaú. A Barra Nova é um dos locais onde mais se percebe as mudanças provocadas pelo homem e a reação da natureza. Em abril de 2007, a força do mar quebrou a barra e avançou sobre a Prainha. Todos os bares foram destruídos e hoje as embarcações flutuam por cima do local. Mas outra Prainha já foi criada a poucos metros da antiga. ### ?Onde está o sururu... Ô coisa boa...? Na busca pelo sururu desaparecido, a Gazeta embarcou numa missão de lancha, com o apoio do Instituto do Meio Ambiente (IMA), da Federação dos Pescadores do Estado de Alagoas e da Colônia de Pescadores de Bebedouro. Nas conversas com quem visita a lagoa todos os dias, várias dúvidas e uma constatação: nenhum sururu foi encontrado. Foram quase quatro horas de viagem entre paraíso e inferno. Uma seqüência lancinante de choques entre as belezas naturais e os efeitos da ação do homem. Quando a vista relaxa sobre a água, o lixo salta aos olhos. Deslumbramento e decepção. Mangue e favela. Siris e pneus. A pureza da lagoa é violada pelos esgotos. ### Megaprojeto ainda inacabado Soluções existem, pesquisas e projetos são muito bem elaborados, mas teimam em ficar no papel. O mais importante deles é o Plano de Ações e Gestão Integrada do Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba, anunciado com toda pompa como a redenção dos problemas que afetam as lagoas. Idealizado há mais de três décadas, o projeto virou um protocolo de intenções em 2000. Somente quatro anos depois, a Agência Nacional das Águas (ANA) em parceria com o governo estadual contratou a elaboração deste plano de ações. Só o planejamento custou R$ 1,1 milhão e demorou dois anos para ser realizado. Para pôr em prática estas ações que deveriam ser de curto, médio e longo prazo, o plano prevê investimentos da ordem de R$ 633 milhões. Quase três anos depois do que deveria ser o início dos trabalhos, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado registra que apenas R$ 17,5 milhões foram utilizados, o que equivale a 2,7% dos valores previstos. ### Ailton sabe onde o sururu nasce Desde o mês de abril sem catar o sururu, o canoeiro José Ailton dos Santos não esconde a emoção ao partir em busca do molusco. De pé na popa, ele rema pelo canal de Bebedouro com a altivez de quem conduz uma gôndola em Veneza. Mesmo ao saber que a Gazeta já procurou de lancha por quase toda a Mundaú, não perde a pose. ?Eu sei qual é o primeiro lugar onde o sururu nasce na lagoa?, cochicha José. Dito e feito. Trata-se de uma região onde ficam as pitimbóias de Bebedouro. São armadilhas para camarão e siri que oferecem um habitat perfeito para o molusco. Logo no primeiro mergulho, José volta com a mão cheia e um sorriso estampado no rosto. ?Tá aqui, ainda é muito pequenininho, mas daqui a uns dois meses já pode ir para a panela. Vai garantir uma boa venda até a Semana Santa?. ### Escassez enfraquece identidade cultural A importância do sururu vai além dos aspectos socioeconômicos e se caracteriza como um símbolo de identidade cultural. Nas antigas marchinhas de carnaval ou na recente produção musical, do cinema às artes plásticas, ele transita no imaginário popular, influencia costumes e se faz presente no cotidiano das ruas, do mercado, das cozinhas e do povo alagoano. A professora de Antropologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Rachel Rocha, destaca que o sururu faz parte do patrimônio imaterial do Estado e a sua escassez também pode trazer graves conseqüências no campo simbólico. /// Pescador do município sergipano de Nossa Senhora do Socorro: competição com Alagoas. Foto: Robson Lima