COMPORTAMENTO
“O bullying não é um acidente isolado: é reflexo de relações doentes e, muitas vezes, naturalizadas”, afirma especialista
Professor Renato Casagrande conversou com o Maré e falou sobre o problema silencioso, que continua fazendo vítimas no ambiente escolar


Comemorado em sete de abril, o Dia Nacional de Combate ao Bullying provoca uma reflexão sobre as atitudes humanas, em especial dentro do ambiente escolar, onde ataques disfarçados de brincadeiras fazem vítimas e reprimem comportamentos. O Maré conversou sobre o assunto com o professor Renato Casagrande, um dos especialistas mais influentes em gestão educacional no Brasil e pesquisador destacado em estratégias e políticas educacionais. Ele falou sobre de que forma o bullying continua impactando na vida de crianças e adolescentes e citou algumas maneiras para evitar que isso continue a acontecer. Confira a entrevista!
Revista Maré: A prática do bullying continua sendo algo comum no ambiente escolar?
Renato Casagrande: Sim. Infelizmente, o bullying ainda é uma realidade presente e, muitas vezes, silenciosa nas escolas brasileiras. Ele não desapareceu; apenas ganhou novas formas. Existem situações veladas, como apelidos e exclusões disfarçadas de brincadeiras, e outras mais graves, como humilhações públicas, ameaças, agressões físicas e até exposições nas redes sociais. Há casos em que o bullying extrapola os muros da escola, envolvendo familiares em conflitos ou até mesmo professores como alvos, ou em algumas situações, como participantes sem perceber. É um fenômeno mais complexo do que parece e, muitas vezes, não é identificado a tempo. O professor, por estar sobrecarregado ou por não ter sido formado para lidar com conflitos emocionais, pode não perceber os sinais. O aluno, por sua vez, muitas vezes se cala. Silencia por medo, vergonha ou por não acreditar que será acolhido. E, em muitos contextos, a escola ainda falha em criar canais reais e eficazes de escuta e apoio. É importante entender que o bullying não é apenas um desvio de comportamento individual. Ele é reflexo de uma cultura social baseada na intolerância, na competição desmedida, na falta de escuta e de empatia. Combatê-lo exige mais do que regras. Exige mudança de mentalidade, ação contínua e o compromisso coletivo de professores, gestores, famílias, governos e sociedade civil.
O que diferencia uma brincadeira de um comportamento caracterizado como bullying? Como educadores e alunos podem identificar esse limite?
A diferença entre brincadeira e bullying pode parecer sutil para quem observa de fora, mas para quem sente, ela é profunda. A linha que separa essas duas situações está baseada em três aspectos fundamentais: intencionalidade, frequência e desequilíbrio de poder. Uma brincadeira, mesmo que provocativa, acontece em um ambiente de igualdade, onde há troca, riso mútuo e, principalmente, consentimento. Ela não causa sofrimento. Já o bullying nasce de uma intenção clara de ferir, ridicularizar ou excluir alguém. Ele se repete com frequência, é sistemático e coloca a vítima em uma posição de impotência, medo ou isolamento. É bullying quando o “apelido carinhoso” provoca dor. É bullying quando o “só estou brincando” deixa o outro envergonhado, isolado ou chorando. É bullying quando o alvo da brincadeira não tem coragem de responder, não tem com quem contar, e não encontra apoio na escola ou na família. Cabe à escola, especialmente aos educadores, ensinar ética relacional, desenvolver a empatia e formar a consciência crítica dos alunos. Não basta proibir comportamentos. É preciso mostrar que o riso de alguns não pode nascer da dor de outros. Que brincar é dividir alegria, não humilhar. E há um fator ainda mais desafiador. O bullying quase nunca acontece diante dos olhos do professor. Ele se instala nos corredores, nos banheiros, no transporte escolar, nos grupos de mensagens. Por isso, o professor precisa aprender a escutar o não dito. Os soluços engolidos, as mudanças de comportamento, os afastamentos silenciosos. Às vezes, a dor do aluno está no olhar, na queda repentina de rendimento, no isolamento durante o recreio.

A capacitação de professores é essencial para lidar com o problema? Que tipo de formação pode ser mais eficaz?
Sem dúvida. Mas é importante deixar claro que não se trata apenas de uma capacitação técnica ou pontual. A formação dos professores precisa ser contínua, profunda, conectada com o cotidiano escolar e sensível à complexidade das relações humanas que envolvem o ato de educar. A maioria dos professores foi formada para ensinar conteúdos, mas não para lidar com sofrimento emocional, mediação de conflitos ou situações delicadas de violência simbólica. E isso gera insegurança, frustração, sensação de impotência e até adoecimento. A formação mais eficaz é aquela que acontece no chão da escola, no coletivo, no cotidiano. Grupos de estudo, rodas de conversa, encontros entre professores, gestores e famílias. Tudo isso fortalece o olhar humano e amplia a capacidade de intervenção dos educadores. A formação continuada precisa ajudar os professores a reconhecer os sinais de sofrimento nos alunos, acolher suas dores, construir vínculos e atuar com clareza em situações de violência relacional. Não é um treinamento técnico. É um processo formativo humano, ético, empático. Cuidar da formação docente é cuidar da saúde da escola. Porque onde não há vínculos, também não há aprendizado.
Qual o papel do apoio psicológico dentro da escola na prevenção e no enfrentamento do bullying?
O apoio psicológico na escola é, hoje, uma urgência. Em tempos em que o sofrimento emocional de alunos e professores cresce de forma silenciosa, o psicólogo escolar passa a ser um elo essencial entre o cuidado e o aprendizado. O bullying, muitas vezes, nasce do sofrimento de quem agride e se alimenta do silêncio de quem sofre. Por isso, o psicólogo atua não apenas como terapeuta, mas como agente de cultura relacional, promovendo escuta qualificada, ações de prevenção e estratégias de convivência. Sua atuação vai além do atendimento pontual a um aluno. O psicólogo ajuda professores a identificar padrões emocionais, media conflitos, contribui para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais e atua diretamente com as famílias. E mais do que isso, ele também acolhe os educadores, que muitas vezes estão emocionalmente exaustos diante das dificuldades do cotidiano escolar. Essa escuta também precisa acontecer.
De que maneira a maior participação da comunidade escolar pode contribuir para a redução desses casos?
O enfrentamento ao bullying não pode ser responsabilidade apenas do professor, do coordenador, diretor ou do psicólogo escolar. É necessário construir uma rede de apoio sólida, onde todos os envolvidos na comunidade escolar se sintam corresponsáveis pelo ambiente educacional. Quando a comunidade escolar - composta por professores, gestores, alunos, pais, funcionários e parceiros – se engaja de forma ativa, os sinais de sofrimento são identificados mais rapidamente e as respostas são mais eficazes. A participação das famílias é especialmente importante para que se crie uma cultura de escuta e respeito, dentro e fora da escola. Existem experiências bem-sucedidas de escolas que criaram canais diretos e anônimos para denúncia de bullying, fortalecendo a confiança e protegendo quem denuncia. Afinal, muitos colegas sabem o que está acontecendo, mas têm medo de se tornarem o próximo alvo. Esses espaços seguros de fala, quando bem conduzidos, são um grande passo para a transformação cultural da escola.

Como a aproximação entre pais e educadores pode ajudar na identificação precoce do bullying?
A aproximação entre escola e família é um dos caminhos mais eficazes para detectar e enfrentar o bullying logo nos primeiros sinais. Quando há confiança e diálogo, tanto os professores quanto os pais conseguem compartilhar observações e perceber mudanças sutis de comportamento que, muitas vezes, passam despercebidas em uma rotina agitada. Crianças e adolescentes não costumam verbalizar diretamente suas dores. Preferem o silêncio. E, por isso, é fundamental que os adultos ao seu redor estejam atentos. Em casa, isso pode aparecer como mudança de humor, irritabilidade, isolamento ou queda no rendimento escolar. Na escola, essas mesmas pistas ganham contornos mais visíveis, como desinteresse pelas atividades, afastamento de colegas ou até comportamentos agressivos como forma de defesa. Para que essa ponte funcione, é preciso mais do que reuniões bimestrais. É necessário criar uma rotina de convivência e formação conjunta. Projetos como grupos de escuta com os pais, ações com psicólogos, rodas de conversa e boletins informativos sobre bullying são instrumentos acessíveis e eficazes. A escola precisa mostrar aos pais que eles não são cobrados por perfeição, mas convidados à parceria. Quando família e escola trabalham juntas, a criança entende que está cercada por uma rede que a protege, orienta e acolhe. E, nesse cenário, o bullying perde espaço para vínculos mais fortes e saudáveis.
Que tipo de ações de conscientização podem ser promovidas dentro e fora da escola para combater o problema?
As ações de combate ao bullying precisam ser mais do que reações pontuais. Elas devem compor uma estratégia permanente de conscientização, sensibilização e construção de valores coletivos. O bullying não é um acidente isolado: é reflexo de relações doentes e, muitas vezes, naturalizadas. Portanto, o enfrentamento começa quando a escola entende que precisa formar consciência coletiva e não apenas aplicar regras. No ambiente interno, as ações mais eficazes são aquelas que envolvem todos os segmentos da escola e que dialogam com a realidade dos alunos. Isso inclui rodas de conversa, assembleias de classe, mediação entre pares, criação de grêmios estudantis com papel de escuta e ação, além de campanhas educativas permanentes. A escola deve dar voz aos estudantes, inclusive para que eles próprios proponham soluções. Essa corresponsabilização é um grande passo na formação de uma cultura de empatia. Fora da escola, a articulação com a comunidade é fundamental. Parcerias com conselhos tutelares, ONGs, igrejas, associações de bairro e universidades podem fortalecer campanhas públicas, realizar oficinas e oferecer formação para as famílias. É importante que o tema do bullying também esteja presente nas mídias locais, em eventos abertos e ações de visibilidade. Mais do que fazer campanhas pontuais, é necessário criar um ecossistema ético. Combater o bullying é criar redes. E toda rede é feita de escuta, presença e compromisso.
A tecnologia e as redes sociais ampliaram os casos de bullying? Como as escolas podem agir contra o cyberbullying?
Sim. A tecnologia potencializou o alcance e a violência do bullying, dando origem ao fenômeno do cyberbullying. Hoje, as agressões não se limitam mais ao espaço físico da escola. Elas seguem o aluno até sua casa, seu celular, sua madrugada. E isso aumenta o sofrimento, porque torna o ataque contínuo, viral e muitas vezes invisível para os adultos. No ambiente digital, o bullying adquire características alarmantes. Ele pode ser anônimo, o que aumenta a crueldade e dificulta a defesa da vítima. Pode ganhar proporções enormes em minutos, pois se espalha rapidamente em grupos e redes sociais. E tem um impacto profundo na autoestima e na saúde emocional das vítimas, especialmente adolescentes em fase de formação identitária. As escolas precisam agir com responsabilidade, mesmo que o episódio não ocorra durante o horário de aula. O impacto emocional recai sobre o aluno no contexto escolar e afeta seu desempenho, suas relações e sua segurança. É fundamental incluir a cidadania digital no currículo desde cedo. Falar sobre ética nas redes, empatia digital, privacidade e responsabilidade virtual deve ser parte do projeto pedagógico da escola. Além disso, criar canais anônimos de denúncia pode incentivar alunos a relatarem agressões sem medo. Também é preciso formar os professores e os pais para entenderem o universo digital dos jovens. Muitos adultos não compreendem as dinâmicas das redes e, por isso, não conseguem orientar ou proteger adequadamente. Por fim, a escola deve ter protocolos claros de ação, envolvendo a gestão, os pais, os alunos e, se necessário, órgãos como o Conselho Tutelar ou a Delegacia de Crimes Cibernéticos. O bullying online não é menos real que o físico. E a dor virtual tem consequências muito concretas.
Além das medidas já mencionadas, que outras estratégias podem ser adotadas para criar um ambiente escolar mais seguro e acolhedor?
Além da prevenção ao bullying, é preciso investir na construção de uma escola que seja, de fato, um espaço de cuidado. Isso passa por rever práticas, ampliar vínculos e fortalecer a cultura do pertencimento. Uma das estratégias mais promissoras é o investimento em projetos de convivência. Não basta falar de bullying apenas quando há um caso grave. A convivência deve ser pauta permanente. Projetos como mediação de conflitos entre alunos, assembleias escolares, mentorias entre colegas mais velhos e mais novos, rodas de diálogo e práticas restaurativas ajudam a consolidar esse clima de respeito e escuta. Outro caminho é fortalecer o protagonismo estudantil. Quando os alunos participam das decisões, propõem atividades e se veem como construtores da cultura escolar, eles passam a cuidar mais do espaço e dos colegas. Isso reduz o individualismo e aumenta a solidariedade. Além disso, o cuidado com os professores também é central. Uma escola acolhedora começa por educadores acolhidos. Investir na saúde mental do corpo docente, promover escuta ativa e valorizar a formação relacional são estratégias que beneficiam toda a comunidade. Criar um ambiente seguro e acolhedor é, antes de tudo, reconhecer que ninguém aprende em um lugar onde se sente ameaçado. Educação é vínculo. Onde há vínculo, há confiança. E onde há confiança, há espaço para aprender e crescer.