MARÉ
Toda comida merece um vinho
Das massas ao cuscuz, do hambúrguer à feijoada: descubra como harmonizar o vinho com as refeições do dia a dia


Esqueça os pratos rebuscados e os jantares à luz de velas. Chegou a hora de harmonizar a comida do dia a dia com o vinho. A bebida, geralmente relacionada a harmonizações mais requintadas, está descendo do pedestal e ocupando seu lugar à mesa, junto ao arroz com feijão, à pizza do sábado à noite, ao cuscuz com manteiga e até ao hambúrguer com batata frita.
A harmonização, antes vista como um mistério reservado a sommeliers e chefs estrelados, agora se revela como uma prática acessível e cotidiana, de forma que consumo de vinho tem se tornado mais democrático e também mais presente nas refeições comuns, seja no almoço de domingo ou na jantinha improvisada durante a semana.
A sommelière e especialista em vinhos Maria Barreiros garante: o vinho cabe no dia a dia e pode transformar qualquer refeição simples em uma experiência sensorial completa.

“O princípio da harmonização serve para qualquer tipo de prato, seja ele simples ou sofisticado. Quando existe conhecimento, é possível encontrar uma boa combinação para qualquer refeição do dia a dia”, explica Maria, com a leveza de quem acredita que vinho é, acima de tudo, prazer.
A harmonização, segundo ela, começa pela busca do equilíbrio entre o prato e o vinho. “De forma básica, o que é importante entender é que o corpo do vinho e da comida devem estar em equilíbrio, ou seja, ter densidade e peso semelhantes em boca”, afirma.
Para um prato tipicamente brasileiro, com arroz, feijão, salada, batata e bife, existe uma combinação perfeita, assim como algumas das iguarias nordestinas mais requisitadas, como o cuscuz com manteiga e o milho verde cozido.
“No primeiro caso, o bife deve ser o principal guia na escolha. A indicação é um Merlot que, por ser frutado, ter taninos macios e acidez média, vai se integrar muito bem ao conjunto de sabores. Já para o cuscuz com manteiga, a melhor pedida é um vinho branco da uva Chardonnay com fermentação malolática, que traz notas amanteigadas e textura mais cremosa, harmonizando por similaridade. O milho verde, ainda que salgado, pede um vinho mais leve, com certa doçura, e podemos pensar em um vinho igualmente leve e meio seco, como o riesling ou algum vinho verde meio seco”, orienta a especialista.

Ela destaca que combinar comida e vinho é entender como os componentes químicos dos dois vão interagir no paladar. Segundo Maria, a harmonização funciona basicamente em três pilares: similaridade, contraste e complementação. Para se ter uma ideia, até a salada, aparentemente “sem graça” para harmonização, tem vez nessa lista.
“Salada sem proteína é super leve e sem sabores pungentes ou intensos. O vegetal e o frescor dominam e é isso que vamos buscar no vinho, portanto, o sauvignon blanc e pinot grigio são vinhos brancos super adequados”, afirma Maria.
Na contramão do senso comum, a especialista desfaz um dos mitos mais populares entre quem começa a apreciar a bebida, o de que os pratos pesados, como a feijoada, pedem vinhos super tânicos, como o Tannat. “Na realidade, vinhos com muitos taninos podem deixar a experiência desagradável, intensificando a sensação de adstringência com a gordura e o sal da feijoada. A escolha certa seria um espumante brut rosé. As borbulhas dele ajudam a cortar a gordura e a limpar o paladar, enquanto a acidez e os sabores frutados complementam o prato de forma leve e equilibrada”, explica.
E há harmonizações que surpreendem e muito. É o caso da acarajé com o vinho torrontés. “Eu amo fazer essa harmonização! Ela simplesmente une todos os aromas da uva torrontés e sua boa acidez com todos os temperos, condimentos, gordura e aroma da acarajé”, revela Maria.
Para quem está começando a gostar de vinhos e experimentando combinações, Maria recomenda deixar o achismo de lado, pois quando se fala em harmonização, existe uma conta exata. “Não é magia ou achismo. É química! É estudo. Harmonização é sobre equilíbrio de sabores”, sentencia.
Ela detalha a qualidade de cada tipo de vinho. “A acidez dos vinhos aumenta a percepção de frescor e salivação; taninos se ligam às proteínas da saliva e dos alimentos, afetando a sensação de adstringência; açúcar e sal interagem neutralizando ou realçando sabores; já o álcool pode acentuar picância”, diz.

Mas, afinal, existe um vinho “coringa”? Sim. Maria fala sobre a opção que é sempre bom ter na geladeira ou na adega, por ser bastante versátil. Diferente do que as pessoas possam pensar, o vinho tinto é o tipo mais inadequado para harmonizar com tudo. Se só for possível manter um vinho na geladeira, a dica é clara: espumante brut ou brancos frutados de boa acidez, pois são versáteis e harmonizam com a maioria das comidas.
Entre os casamentos inusitados que funcionam bem, ela lista: “Pizza de calabresa com tintos de merlot ou tempranillo; hambúrguer com tinto primitivo de manduria; feijoada com espumante brut rosé; comida italiana ao sugo com Chianti; churrasco com malbec ou tannat ou cabernet sauvignon”.
Os vegetarianos e veganos também podem apreciar um bom vinho durante as refeições, seguindo o mesmo princípio: corpo, acidez, doçura, alcóol, tanino (ou não). Um exemplo é a harmonização clássica do risoto de cogumelos com o pinot noir, que tem características sensoriais terrosas que lembram cogumelos.
Para quem quer começar a se aventurar na seara dos vinhos, é importante saber o que não dá certo, considerando que existem algumas combinações que podem ser consideradas verdadeiros desastres.
“Eu diria que o maior desastre é vinho tinto encorpado, como cabernet sauvignon, tannat, barolo e malbec, com comidas muito apimentadas e peixes frescos e leves, com o sashimi. E o pior, muita gente faz, por desconhecimento. O tanino do tinto vai brigar com o iodo do peixe e sentimos uma sensação metálica no paladar. E, no caso da pimenta, a capsaicina da pimenta dá uma sensação de fogo e ardência, quando encontra o tanino isso é potencializado e você fica com as papilas gustativas dormentes. Não sente nem o sabor do vinho, nem da comida. O branco é bem melhor, na verdade, é incrível! Uma ótima experiência enogastronômica”, explica Maria.

Também é preciso derrubar o pensamento de que vinho bom é vinho caro, pois é possível ter acesso a bebidas de qualidade a preços acessíveis. “Eu costumo dizer que você precisa responder a três perguntas para ter um direcionamento de qual vinho está buscando: quanto você tem pra gastar com o vinho? Qual sua trajetória no mundo dos vinhos, iniciante, intermediário, avançado? E com o que você vai harmonizar? Sobre preços, eu costumo dizer que se for adquirir a bebida em supermercado, evite vinhos que sejam menos de 60 reais. Já nos restaurantes, evite os que custam menos de 90 reais”, fala.
Além de ter o poder de deixar qualquer refeição mais gostosa e qualquer encontro mais prazeroso, os vinhos também são importantes nos rituais de bem-estar e autocuidado, desde que consumidos de forma consciente e moderada.
“Além de proporcionar um momento de relaxamento e concentração, estimulando os sentidos e criando uma experiência de prazer, o vinho, especialmente o tinto, contém polifenol, que tem resveratrol, um antioxidante que ajuda a melhorar a circulação e pode trazer benefícios à saúde. Incorporado em rituais de desconexão, seja sozinho ou em momentos de socialização, o vinho pode ser um símbolo de equilíbrio, promovendo tanto o prazer sensorial quanto o cuidado com o corpo e a mente”, explica Maria, que compartilha toda a sua experiência com os vinhos no perfil do Instagram @vinhocommaria.
Com um pouco de atenção e conhecimento, cada gole de vinho pode ser uma porta aberta para o prazer. Não importa se ele vem acompanhado de lagosta ou de um pão com manteiga.