RECARREGANDO AS BATERIAS
Sono: o combustível do amanhã
Excesso de telas e maus hábitos durante o dia influenciam diretamente na qualidade do sono; muito além do descanso, dormir bem está relacionado à saúde e à disposição


Dormir bem é mais do que descansar: é garantir que o corpo e a mente realizem processos vitais para a saúde e o bem-estar. Durante o sono, o organismo ativa mecanismos de reparação, consolidação da memória, equilíbrio hormonal e fortalecimento do sistema imunológico. No entanto, em uma sociedade cada vez mais acelerada e conectada, noites mal dormidas se tornaram comuns - e os impactos vão muito além do cansaço e da falta de disposição no dia seguinte.
Estudos mostram que a privação de sono, especialmente quando se torna crônica, está associada ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, neurológicas, metabólicas e até psiquiátricas. Irritabilidade, dificuldade de concentração e lapsos de memória são apenas os primeiros sinais de um problema que pode evoluir para quadros graves como hipertensão, infartos, ansiedade e depressão. Em outras palavras, a qualidade do sono é um indicador direto da qualidade de vida.
Apesar da importância, ainda existe um desconhecimento geral sobre o que acontece com o corpo enquanto dormimos e quais práticas realmente ajudam a melhorar o descanso. O chamado “relógio biológico” — regulado pela luz do dia e pela escuridão da noite — dá o tom do nosso ritmo circadiano, mas fatores externos como o uso excessivo de telas, horários irregulares e o estresse constante interferem nesse equilíbrio natural. O resultado é um aumento expressivo nos distúrbios do sono, como a insônia e a apneia.

Especialistas defendem que cuidar do sono deve ser encarado como parte essencial para a saúde, assim como acontece com a alimentação equilibrada e a atividade física. Criar uma rotina de higiene do sono, reduzir a exposição à luz artificial à noite e respeitar os sinais do corpo são medidas simples que podem transformar o dia a dia. Afinal, dormir bem não é luxo, é uma necessidade biológica, pilar de prevenção de doenças e chave para uma vida mais produtiva e plena.
A médica otorrinolaringologista especialista em sono, mestre e doutora em Ciências da Saúde, Amanda Lira, destaca que, para que o sono cumpra a suas funções de descanso e de reparação das funções orgânicas, é preciso que ele ocorra com a qualidade necessária e o tempo suficiente, respeitando o ritmo biológico endógeno e sua interação com o ambiente e os estímulos externos, o que deve coincidir de uma forma geral com o ritmo circadiano de claro/escuro - ou seja, de dia acordado e à noite dormindo.
“Enquanto dormimos, todas as nossas funções estão sendo reparadas e moduladas para que, durante o dia, estejamos aptos para uma nova jornada. Por exemplo, durante o sono de ondas lentas, uma das fases do sono mais profundas, há a produção e liberação do hormônio e fatores de crescimento que são essenciais para o crescimento e o desenvolvimento das crianças e adolescentes, e no adulto ocorre o processo de reparação tecidual e cicatrização. Já durante o sono REM, outra fase profunda do sono, há a consolidação da memória relacionada às experiências obtidas durante o dia, sendo fundamental para o desenvolvimento e a preservação cognitiva”, afirma.

Os prejuízos de uma noite de sono mal dormida, com muitas interrupções ou até mesmo com tempo insuficiente para a recuperação do corpo, são muitos, e afetam diversos sistemas. É preciso descansar para conseguir enfrentar o dia seguinte com disposição.
“Estados de privação de sono especialmente crônica vão gerar uma desarmonia no reequilíbrio e modulação dos diversos sistemas do corpo. Funciona assim, durante o sono noturno, a gente se prepara para entrar em atividade no dia seguinte, e é por isso que se o sono não acontece com o tempo necessário e com a qualidade suficiente, o corpo não consegue se recuperar de um modo eficaz, e todos os sistemas orgânicos acabam sofrendo de algum modo à curto, médio ou longo prazo”, explica a especialista.
A má qualidade do sono pode afetar os sistemas cardiovascular, neurológico, endócrino, imunológico, respiratório e mental, desencadeando ou agravando doenças como hipertensão arterial sistêmica, arritmias, infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico, demências, transtornos do humor e ansiedade, obesidade e outras patologias. “Além de gerar sintomas diurnos como cansaço, sonolência, irritabilidade, diminuição da concentração, atenção e memória, atrapalhando, portanto, nas atividades de trabalho, lazer ou de estudos durante o dia”, completa a médica.

Não existe um horário ideal para dormir, mas a especialista explica que o corpo humano respeita o ritmo cicardiano de funcionamento, que coincide com o claro e o escuro, que estão relacionados à luz do dia e à escuridão da noite. Com os sistemas orgânicos acontece a mesma coisa. Portanto, os humanos são preparados para ficar acordados durante o dia e para dormir durante a noite, por volta de oito horas.
“Mas é claro que há variações individuais que têm relação com questões genéticas e isso deve ser considerado, ou seja, pessoas que têm preferência por dormir mais tarde e acordar mais tarde, dizemos que essas pessoas têm um cronotipo vespertino. Já as pessoas que preferem acordar muito cedo e deitar muito cedo, são do cronotipo matutino”, diz Amanda.
O relações públicas Igor Nascimento, de 31 anos, descobriu que sofria de apneia do sono há dez anos, enquanto buscava tratamento para uma inflamação na garganta. Desde então, ele utiliza um aparelho dental que possibilita uma melhor respiração enquanto dorme e, consequentemente, garante que ele tenha um dia mais produtivo.
“Fui em busca de médico para tratamento de uma garganta inflamada e, durante o tratamento, a médica fez uma investigação completa e descobriu que eu sofria de apneia do sono. Fui diagnosticado há uns 10 anos e utilizo um aparelho dental que me permite respirar melhor durante o sono. É um tratamento constante”, afirma.
Ele diz que a diferença na disposição após uma noite de sono, depois que começou a usar o aparelho, é facilmente notada. “A diferencia é enorme, ao usar o aparelho sinto meu sono contínuo e acordo bem mais disposto. Quando esqueço de usar, passo a noite toda acordando”, relata Igor.

HIGIENE DO SONO
E ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, bons hábitos diurnos influenciam diretamente na qualidade do sono e ajudam a prevenir e a tratar os distúrbios que possam aparecer. As boas práticas a serem adotadas no dia a dia integram a “higiene do sono” e passam pela atividade física regular e preferencialmente pela manhã, evitar cochilos durante o dia e exposição excessiva à luz e aos equipamentos com estímulo foto luminosos - como televisão, celulares, computadores e tablets -, especialmente após o entardecer.
Além disso, o equilíbrio entre as tarefas do dia a dia, realizando atividades de relaxamento, evitando bebidas alcoólicas e estimulantes próximo da hora de dormir também ajudam a garantir uma boa noite de sono. “É importante a consciência de que cuidar do sono, além de contribuir para a preservação da saúde do corpo e da mente, nos ajuda a ter mais disposição e bem-estar para viver e desfrutar da vida durante o dia com alegria e satisfação”, fala a médica Amanda Lira.
A especialista pontua que um dos principais estímulos externos que exerce uma influência relevante no ritmo biológico endógeno é, justamente, a luz, por isso a importância de diminuir ao máximo o uso de telas ao cair da noite.
“A diminuição ou ausência da luz com o pôr do sol estimula uma estrutura do sistema nervoso central, a glândula pineal, a secretar o hormônio melatonina, que impulsiona e sustenta o sono. Assim, o pico de melatonina deve acontecer durante a noite e sentimos a vontade de dormir, mas para que isso aconteça é necessária a redução da exposição à luz”, afirma.
Com o excesso do uso de telas que vivenciamos atualmente, os distúrbios e as perturbações do sono se tornaram mais frequentes e precoces, influenciando diretamente na qualidade de vida das pessoas, o que inclui crianças e adolescentes. Para evitar que os problemas surjam, é preciso adotar as boas práticas de higiene do sono o quanto antes, desde a infância, de forma que tais hábitos sejam levados também para a vida adulta.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que cerca de 45% da população mundial é acometida por perturbações relacionadas ao sono com impacto na saúde geral. Os distúrbios do sono mais frequentes são a insônia e a apneia obstrutiva do sono, que, conforme explicado pela médica especialista, é uma condição em que a pessoa para ou diminui a respiração de maneira intermitente durante sono e frequentemente está associada à presença de roncos noturnos.
QUANDO BUSCAR AJUDA?
A médica Amanda Lira destaca que o sono deve ser reparador e ocorrer de uma forma silenciosa e tranquila, de tal forma que, ao despertar pela manhã, a pessoa se sinta bem, com disposição e apta para realizar as suas atividades do dia a dia. Se, com frequência, alguém tem dificuldade para dormir e, após uma noite inteira deitada, se sente cansada, sonolenta e sem disposição, ou com alterações da memória, concentração e atenção, é preciso que essa condição seja avaliada adequadamente por um especialista em sono.
“Se isso não estiver acontecendo, ou seja, se o indivíduo ao despertar já se sente cansado, com dor de cabeça ou ainda durante o dia se sente sonolento, irritado, depressivo ou com rebaixamento das funções cognitivas, é preciso procurar a ajuda do especialista do sono para o diagnóstico e planejamento terapêutico”, afirma.
Um aspecto importante do sono que poucas pessoas conhecem é que ele exerce um papel crucial para o funcionamento do sistema imunológico, que defende o corpo de agentes estranhos, também chamados de patógenos ou antígenos.
“O sistema imune é responsável por defender o corpo contra agentes externos como vírus ou bactérias, dentre outros antígenos. Para que funcione de forma equilibrada e eficaz, ele respeita um ritmo circadiano de funcionamento: durante o dia, o sistema imune realiza o combate direto ou indireto ao agente estranho, e durante à noite ele se prepara para realizar essa atividade durante o dia, ao mesmo tempo em que ele é modulado e reequilibrado durante o sono, especialmente durante o sono de ondas lentas ou estágio N3 do sono não REM. Além disso, é durante o sono que ocorre a memorização das informações dos patógenos que o corpo teve contato durante o dia para que em contatos posteriores o sistema imune apresente uma resposta específica e eficaz contra esse agente, como acontece na vacinação. Portanto, a privação de sono diminui a capacidade do sistema imune de registrar essa memória ao patógeno, ficando então mais suscetível às doenças infecciosas ou a ineficiência da vacinação”, explica.