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ENTRE PONTOS E LINHAS

O resgate do bordado à mão

Associação Mimos de Dona Peró transforma tradição em obras de arte, levando o talento alagoano para todo o país

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Imagem ilustrativa da imagem O resgate do bordado à mão
| Foto: Cortesia

Uma associação que nasceu da força, da superação e do desejo de resgatar a arte do bordado feito à mão. Assim pode ser definida a Mimos de Dona Peró, uma homenagem a uma mulher de Capela que fez o bordado perdurar por gerações. Criada pela artesã, artista plástica e professora Luciana Almeida, de 45 anos, o local hoje é fonte de arte, formação e difusão do que há de mais genuíno no fazer manual.

A história da associação começou muito antes dela, de fato, existir. Nasceu primeiro em forma de encontro, de afeto e de troca entre duas mulheres de gerações diferentes: Luciana Almeida e Dona Peró. Quando se conheceram, Luciana tinha apenas 16 anos; Dona Peró, então com 80, já aposentada, carregava na bagagem uma vida inteira produzindo enxovais bordados e pintados à mão que chamavam atenção pela delicadeza e pela precisão dos pontos. O encontro das duas aconteceu por iniciativa da própria Dona Peró, encantada ao ver algumas pinturas feitas por Luciana em panos de prato.

Daquele primeiro contato surgiu um ritual que marcaria para sempre o caminho da jovem artesã. Todos os sábados, ela passava as tardes na casa da mestra, conversando, observando seus desenhos e revistas antigas, ouvindo histórias e recebendo conselhos sobre técnicas, cores e processos.

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| Foto: Cortesia

Naquelas conversas, Dona Peró relembrava o tempo em que o bordado era altamente procurado na cidade e falava da experiência de ter levado ao prefeito, em 1963, a ideia de criar uma escolinha de artes, proposta que foi aceita e implantada. Ali, ao lado de suas alunas, ela confeccionava enxovais de casamento, conjuntos para bebês, camisolas para a ‘Primeira Noite’ e tantas outras peças que viajavam para cidades vizinhas e até para a capital. A prática do bordado movimentava a vida das mulheres capelenses, fortalecia laços e se tornava parte da identidade cultural da comunidade.

O tempo passou, e Dona Peró demonstrava tristeza ao perceber o desinteresse das jovens pela arte manual. Foi então que Luciana pediu para aprender. Professora de pintura na escolinha de artes, ela viu naquele pedido uma oportunidade de ampliar seus próprios horizontes. Dona Peró já não tinha mais firmeza nas mãos para bordar, mas ditava cada ponto, cada movimento de agulha, que Luciana executava com atenção e encantamento. Dessa troca surgiu não apenas o domínio de uma técnica, mas uma relação de confiança e de legado afetivo que marcaria definitivamente o futuro da artesã.

Anos depois, já casada e mãe, Luciana enfrentou um dos momentos mais difíceis de sua vida: a perda trágica do marido em um acidente. O impacto emocional foi tão intenso que ela se viu incapaz de continuar pintando telas, atividade que lhe trazia profundo prazer. A dor parecia impedir qualquer criação, e a arte, por um período, deixou de ser companhia.

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| Foto: Cortesia

No ano seguinte, veio outra perda igualmente significativa: Dona Peró faleceu. A ausência das duas bases que sustentavam sua vida afetiva e artística pesou profundamente. Foi nesse cenário que o desejo de voltar ao bordado, agora como modo de cura e resistência, tornou-se ainda mais forte. Luciana decidiu criar um projeto na escolinha de artes com o objetivo de resgatar o bordado à mão, conectando-se novamente à memória e aos ensinamentos de Dona Peró.

O projeto ganhou forma e, em 2009, resultou na criação de uma coleção de roupas bordadas, lançada em Maceió. Ao lado das alunas, Luciana traduziu para o tecido histórias de Capela e da cana-de-açúcar, produzindo peças que combinavam técnica, tradição e identidade local. O sucesso foi imediato. A procura por cursos e pelo bordado fez com que mais mulheres se aproximassem, interessadas em aprender e produzir. Assim nasceu a Associação das Bordadeiras e Costureiras de Capela, batizada carinhosamente de Mimos de Dona Peró em homenagem à mulher que havia plantado, anos antes, a semente de tudo.

Hoje, a associação reúne 22 mulheres e um homem, todos envolvidos na produção de roupas, enxovais de bebê, panos de prato, panos de bandeja, guardanapos, jogos americanos, toalhas, quadros, almofadas, laços para cabelo, bolsas, ecobags, chaveiros e bastidores. O pedido mais inusitado já recebido foi o de bordar uma cueca, enquanto os guardanapos seguem sendo o item mais procurado.

Imagem ilustrativa da imagem O resgate do bordado à mão
| Foto: Cortesia

Luciana é responsável por todos os desenhos e pelo design das peças, criando modelos exclusivos que se tornaram marca registrada do grupo. O trabalho envolve dedicação intensa e uma única peça de roupa pode levar cerca de 35 horas para ser concluída.

“Nosso diferencial é que bordamos com as tradicionais linhas de meadas de algodão. Bordamos muito as histórias dos folguedos, em especial o Guerreiro Alagoano, e também a história da cana-de-açúcar, completando versos. Sempre enfatizando o nosso cotidiano, as peças de roupas são costuradas por nós com modelagem própria e o avesso do bordado muitos confundem com o direito”, fala Luciana, orgulhosa.

Os pontos mais utilizados incluem matiz, cheio, nó francês, jante, caseado, corrente, crivo, bainhas abertas e ponto furado. A associação também mantém viva a técnica do rechilieu à mão, sendo o único grupo da região a executá-la artesanalmente.

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| Foto: Cortesia

“O rechilieu é uma técnica de bordado vazado e recorte que cria desenhos únicos com grau de dificuldade intenso. Sua principal característica é o recorte das partes do tecido, criando espaço vazios pelo bordado, que é executado em tecidos nobres como linho e algodão. A técnica requer paciência e precisão, pois envolve o delicado processo de cortar o tecido após o bordado”, ressalta.

COLEÇÕES

As coleções criadas pela Mimos de Dona Peró são lançadas anualmente, sempre temáticas. A deste ano, intitulada Coleção Fé, foi inspirada nas obras da artista naif Tânia de Maya Pedrosa. Os bordados também viajam pelo país: Bahia, Brasília, Recife, Ceará e Minas Gerais já receberam o trabalho da associação em feiras e eventos culturais, onde o grupo é reconhecido pela harmonia das cores, pelo acabamento impecável e pelo design das peças.

A demanda tem aumentado significativamente, e, embora o reconhecimento seja cada vez maior, o desafio permanece, pois o valor atribuído às peças nem sempre corresponde às horas de trabalho exigidas, uma realidade comum na produção artesanal brasileira. Ainda assim, Luciana reconhece uma melhora no cenário. "As pessoas estão valorizando mais", afirma, mesmo apontando que o equilíbrio ideal ainda não chegou.

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| Foto: Cortesia

O cotidiano da associação é marcado por desafios. O acesso a matéria-prima de qualidade muitas vezes exige compras em outros estados, elevando custos com frete e impostos. Há também a concorrência com produtos industrializados, vendidos a preços inferiores, e o número ainda limitado de clientes capazes de valorizar e arcar com o preço justo do trabalho manual. Além disso, a mão de obra ainda é pequena, o que motivou a criação de oficinas de repasse, especialmente na zona rural de Capela, ampliando oportunidades e garantindo a transmissão da técnica para novas gerações.

PARCERIA DE SUCESSO

A partir de 2022, um novo capítulo começou a ser escrito na história da Mimos de Dona Peró, por meio da parceria com o estilista Antônio Castro da Foz, da marca Foz. Desde o primeiro desfile dele no São Paulo Fashion Week, o grupo passou a participar com suas peças, levando o bordado capelense aos olhos do grande público. Luciana define a parceria com Antônio como “um divisor de águas”.

Segundo ela, após a união com a marca, o alcance da associação se ampliou significativamente, abrindo portas para novos clientes e possibilidades. O estilista, além de admirador da técnica, tornou-se incentivador da equipe e um apoiador do valor artístico do bordado.

Imagem ilustrativa da imagem O resgate do bordado à mão
| Foto: Cortesia

Na coleção mais recente, intitulada Povoado Poesia, Antônio lançou um desafio pessoal a Luciana. Ele sabia que ela era pintora, mas também conhecia o bloqueio emocional que a afastara das telas desde a morte do marido. Para estimulá-la a reencontrar essa parte de si, levou-lhe uma tela em branco e pediu que pintasse uma paisagem imaginada de Capela do passado, a cidade do tempo de Dona Peró. Luciana hesitou. Passou cerca de três meses apenas olhando para a tela, tomada pelo medo, pela insegurança e pela dúvida. Até que decidiu tentar.

Começou sem saber ao certo para onde estava indo, mas, pouco a pouco, a paisagem surgiu. Quando mostrou o resultado a Antônio, foi tomada pela mesma insegurança inicia, mas a reação dele trouxe alívio e alegria. Ele se encantou com o trabalho e confirmou que era exatamente o que buscava. Pediu que pintasse outras cinco telas, que foram digitalizadas e transformadas em estamparia para compor as peças da coleção. Luciana acompanhou o desfile onde suas pinturas e bordados ganharam vida na passarela. Um momento que descreve como profundamente emocionante e repleto de gratidão.

Imagem ilustrativa da imagem O resgate do bordado à mão
| Foto: Cortesia

Para Luciana e as bordadeiras, o bordado é mais que uma técnica, é memória, identidade, sobrevivência e celebração. É, como define ela, “arte viva”, motivo de orgulho e verdadeiro patrimônio. A associação Mimos de Dona Peró, que nasceu de uma amizade, de uma dor e de um desejo profundo de preservar a tradição, hoje se firma como um dos mais importantes movimentos de resgate cultural e fortalecimento artesanal de Capela, onde as agulhas e as linhas representam instrumentos de resistência, de beleza e de transformação.

Foz

SPFW N60

Foto: Ze Takahashi/ @agfotosite
Foz SPFW N60 Foto: Ze Takahashi/ @agfotosite | Foto: Cortesia

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