“E se isso acontecer com um filho meu?” Foi o que se perguntou Lorena Vitória, uma mulher negra de 21 anos, após ver seus namorados, todos negros, serem abordados com violência pela Polícia Militar.
O medo de que os futuros rebentos sejam vítimas de racismo faz com que a estudante de design de moda questione se vale a pena ceder ao desejo de ser mãe, ou se é melhor não colocar outra criança negra em um mundo racista.
“A gente vê hoje em dia as coisas que acontecem, tanto de abordagem como de morte, e eu sempre fico muito mal e acabo imaginando: se com o filho dos outros já me dói tanto, como seria se isso acontecesse com um filho meu?”, diz.
A indecisão de Lorena é comum entre mulheres negras. O medo de que seus filhos sofram racismo —que se manifesta na violência policial e obstétrica, no preconceito e na discriminação— faz com que muitas delas abram mão da maternidade.
A decisão também serve como proteção à própria saúde mental. Isso ocorre pois o racismo é motor de sofrimento psíquico, afirma Marizete Gouveia, doutora em psicologia pela Universidade de Brasília e autora da tese “Onde se esconde o racismo na psicologia clínica?”.
Segundo a especialista, o sofrimento causado pelo preconceito racial faz com que mulheres negras criem mecanismos de proteção à saúde mental. Não ter filhos é um deles, uma vez que não precisariam se preocupar com as violências que viriam a sofrer.
“Pode ser uma medida de autoproteção, no sentido de não ter que se preocupar com a criança, mas vai além disso. É também não trazer uma criança para esse mundo violento. Eu vou me poupar de não ter essa preocupação, mas também é um alívio não vivenciar essa criança sendo exposta a esse mundo.”
De acordo com o Atlas da Violência 2021, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde a década de 80, quando começaram a crescer as taxas de homicídio no Brasil, o aumento foi mais acentuado entre a população negra, especialmente entre os mais jovens. E o medo se torna ainda maior se o filho for homem.
Um levantamento realizado pelo Fórum com microdados do Anuário de Segurança Pública mostra que negros são 78,7% do total de mortes violentas intencionais entre homens. Isso significa que um homem negro tem 3,7 vezes mais chances de morrer do que um não negro.
Evelyn Daisy de Carvalho de Sousa, 39, por outro lado, nunca teve um forte desejo de ser mãe devido a uma condição de saúde hereditária. Conforme se tornou adulta, o medo de que seus filhos sofressem violência foi o que era preciso para que ela confirmasse a decisão. Percebeu também que precisava proteger sua saúde mental. Sabia que ter um filho negro seria motivo de preocupação constante.
Sua decisão acumula ainda outras variantes. Fundadora do Traçamor, um projeto que atende mulheres em período de transição capilar, Evelyn também é responsável pela criação de dois sobrinhos negros, o que faz com pense constantemente em como os manter vivos e seguros.
O estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, publicada nos Cadernos de Saúde Pública em 2017, mostra que mulheres pretas são mais propensas do que brancas a terem um pré-natal inadequado, ausência de acompanhantes no parto e menos anestesia local quando praticada a episiotomia, que consiste num corte na região da vagina para facilitar a saída do bebê.
Para Janete Santos Ribeiro, mestre em educação pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e ex-coordenadora pedagógica do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o racismo tem definido as necessidades e escolhas da população negra.
A pesquisadora se diz dividida quanto ao que pensa sobre a decisão de mulheres negras que optam por não ter filhos. Por um lado, crê que a população negra não deve pautar suas escolhas apenas com base na violência que sofre. Por outro, acredita ser importante que essas mulheres encontrem mecanismos que as ajudem a proteger seu bem-estar e saúde mental.
“Eu acolho as duas perspectivas, mas acredito que o importante é que a pauta, o agenciamento seja nosso. Não partir das violências impostas historicamente aos nossos corpos. Se não você sai de um adoecimento para outro”, afirma Ribeiro, que também é professora da educação básica.
A pesquisadora pondera, porém, que a decisão deve levar em consideração se existe o desejo pela maternidade e pensar em quais formas isso será sanado para não virar um fator de sofrimento. “A solidão da mulher negra tem sido uma imposição da cultura patriarcal, elitista e racista. Não queremos mais essa solidão pautando nossas decisões e escolhas.”