Opinião
Brasil em transe

A. SÉRGIO BARROSO * Ao cretino fundamental, nem água. (Nelson Rodrigues, entrevista de 1978). Soçobrava a escravidão feito alma penada e a velha República oligárquica fragmentava-se. Em busca da identidade nacional vieram dois gigantes nordestinos: o sergipano Manuel Bomfim e o pernambucano Gilberto Freyre. Vasculhando os escaninhos da Colônia, interrogavam-se: quem somos? Pioneiro na crucial questão, Bomfim, publicou O Brasil na América (1929), e pouco antes de sua sofrida morte, O Brasil Nação realidade da soberania brasileira (1931). Freyre tornou-nos conhecidos no mundo com Casa-Grande & Senzala (1933) clássico da sociologia -, além de vastíssima obra sobre nossas entranhas. Seu Nordeste (1936-7), é simplesmente primoroso, vale lembrar. Os dois, quase uníssonos apologistas da fusão português-negro-índio, do excepcionalíssimo caráter brasileiro - inspirador, futurístico. Também se entrecruzaram na crítica à Revolução de 30, todavia por razões distintas. Bomfim, um nacionalista rebelde, a ela se referindo, disse que a agitação política atual, por mais profunda que pareça, não realiza nenhuma das condições de uma legítima revolução (O Brasil Nação). Já Freyre escreve sua grande obra no auto-exílio de solidariedade a Washington Luiz, deposto por Getúlio Vargas. E Vargas foi estadista do capital-trabalho e ditador. Sob seu governo emerge o Estado-Nação, ou o capitalismo industrial; tardio, dependente e verdadeira usina de reprodução da desigualdade social. Aos trancos e barrancos, entre 1947 e 1980, o Brasil obteve uma taxa média do PIB (Produto Interno Bruto) de 7,1%; um crescimento do produto industrial de 8,5%; o PIB per capita cresceu 4,2% ao ano, enquanto a população foi multiplicada por três. A fisionomia do país virou de ponta-a-cabeça: em 1940, 70% da população era rural; em 1980, 70% viviam em cidades. No conjunto da década de 80 (do epitáfio da ditadura ao fim do governo Sarney) o crescimento econômico regrediu a 2,3% e o produto industrial desabou para 1,1%. Nos anos 90 (com mais de 1,5 milhão de jovens a ingressar ao ano no mercado de trabalho) o PIB estacionou em 2,1%. Decênio infame e ponto final. Transpassado o século e às portas das primeiras eleições gerais, desnecessário esculhambar o crepúsculo dos governos de FHC. Mesmo distorcidamente, a campanha eleitoral tem a isso servido. Mas, repita-se à exaustão: a regressão neoliberal decompõe a identidade da nação brasileira. Fomos levados a uma desestruturação social sem precedentes, à marcha forçada da submissão mais cretina. E ninguém mais do que Nelson Rodrigues compreendia a cretinice. (*) É MÉDICO E SINDICALISTA