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O queixo do Noel

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A cara triste, para sempre marcada pelo inexistente queixo, foi uma das características físicas de Noel Rosa. Resultado de um parto feito à fórceps, anomalia anatômica que o marcaria eternamente. Desde cedo afeito ao desregramento das noitadas à base de muita cerveja e cigarro, seu combalido e frágil organismo era um chamariz para as doenças. Oriundo da classe média, misturou-se com os compositores populares e boêmios que frequentavam a Lapa, a maioria dos quais vinha das favelas cariocas. Forçado pela família, entrou na Faculdade Nacional de Medicina, mas o apelo da vida boemia superou em muito a atração das bancas de histologia e anatomia, onde ele mesmo era uma aberração. Suas músicas faziam uma crônica do cotidiano com humor e crítica social;como a clássica ?Com que roupa eu vou??, advinda de uma farra que ia fazer com os amigos e foi impedido pela mãe, que escondeu suas roupas.Diagnosticado com tuberculose, precisou se submeter aos tratamentos dolorosamente primitivos de então, que incluíam longas estadias em cidades altas, de clima puro e seco, como Petrópolis e Belo Horizonte. Após mudar-se para BH, sentindo-se melhor, escreveu para seu médico, dr. Graça Melo: ?Já apresento melhoras/ Pois levanto muito cedo/E deitar as nove horas/Para mim é brinquedo/A injeção me tortura/E muito medo me mete/ Mas minha temperatura/Não passa de trinta e sete/ Creio que fiz muito mal/Em desprezar o cigarro/Pois não há material/Para o exame de escarro?. Lá enturmou-se com a boemia mineira e continuou a vida desregrada. Voltou para o Rio, para a Lapa e para a boemia, achando-se curado; mas veio a falecer, aos 26 anos, de tuberculose, em casa. O centenário do grande sambista nos traz as justas reverências e homenagens à sua obra, hoje entre as mais cultuadas no cânone nacional. Uma indagação: não fosse Noel vítima de uma imperscrutável situação do que porventura poderia ser chamado erro médico -- o trauma facial do parto à fórceps --, teria tido um destino diferente? Talvez sim, talvez não: amou e foi correspondido por muitas mulheres, mas nunca escondeu sua frustração, seu recalque pelo queixo quase inexistente. Os erros médico-hospitalares, embora a Medicina muito tenha evoluído, não se reduziram; sejam pelos maus profissionais, pelo despreparo, ou ainda mais pelo excesso de trabalho, pelas jornadas múltiplas, inconciliáveis e mal remuneradas. Noel agora talvez escrevesse: ?Hoje a cesariana me daria um queixo/Mas não me daria a suprema felicidade/ No hospital entrar e sair do leito/ Com total e absoluta tranquilidade?. (*) É médico.

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