Opinião
A travessia de Guimarães Rosa

Passaram-se vários anos até eu voltar a ler Guimarães Rosa depois da primeira tentativa frustrada. Eu já escrevia crítica literária para o jornal Folha de S. Paulo quando recebi um conselho de minha amiga e mestra em Literatura, a saudosa professora Izabel Torres de Oliveira: ?Você, Agamenon, cedo ou tarde, deve passar pelas veredas de Rosa. Essa travessia é importante para que você faça a diferença e tenha mais confiança na força expressiva do idioma. Não postergue mais esse encontro entre você e ele, mergulhe de cabeça no mundo de Rosa?. Tomei o conselho como ?ordem? e retomei a leitura de Grande Sertão: Veredas. Não foi fácil, mas, naquela segunda tentativa de leitura, eu o li com o coração e com os ouvidos atentos. Sim, isso mesmo: deve-se entrar no universo rosiano por meio da sensibilidade do coração e também pela sutileza sonora criada pelo autor. Naquele sertão onde prosa e poesia andam de mãos dadas, é preciso mais do que inteligência para compreendê-lo, é preciso ter espírito aberto. No mundo de Rosa, aprendi o significado de duas palavras relacionadas ao idioma: beleza e riqueza. Toda a obra de Rosa é tão bela quanto rica. O autor relata casos com o mesmo lirismo de um épico, com a riqueza que só quem domina o idioma pode nos oferecer. Meus olhos nunca mais deixaram de se dirigir para as palavras desse gênio da invencionice vocabular. Que outro autor teria a sensibilidade de juntar sabedoria de vida, vocábulos neológicos e lições universais numa só obra? Por meio de Grande Sertão: Veredas consegui vivenciar plenamente o reino encantado do texto bem escrito, em que a significação da palavra tem mais importância do que a própria palavra. Lendo o livro mais famoso do escritor mineiro, acrescentei ao meu repertório termos como ?belazul? (Rosa juntou o adjetivo belo ao substantivo azul), ?plenipotência? (que significa poder absoluto), ?màmente? (é o feminino de mau com o sufixo adverbial), ?belimbeleza? (quer dizer beleza empolgante), ?meio-mil? (tem o sentido de grande número)... E por aí vai. Depois que decifrei os mistérios de Grande Sertão: Veredas, dediquei-me às outras obras de Rosa, sem decepções: a magia do escritor está presente em tudo que escreveu. Ao ler Sagarana, fiquei extasiado com a palavra mais bonita (e poética) de Rosa: ?amormeuzinho?. Só um gênio para pegar o vocábulo ?amor?, colocá-lo junto com o sufixo formador de diminutivo (?zinho?) e, por fim, inserir entre eles o pronome possessivo ?meu?. A expressividade dessa palavra resume a áurea absolutamente fora de série de um escritor que não se contentava em demonstrar sentimentos apenas com o léxico existente, ele tinha de criar outras com maior poder de expressão. Na obra Estas Estórias, Rosa construiu a expressão jocosa, em tom lúdico, ?vice ou trice-versa? (significa isso ou o contrário); no livro No Urubuquaquá, no Pinhém, criou ?desflor? para indicar a idade de murchar, perder o viço; em Noites do sertão, Rosa juntou ?viver? e ?florescer?, surgiu vivescer. Prosa e poesia de mãos dadas. Novas palavras... novo mundo.